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João Saldanha revolucionou futebol brasileiro com seleção de 1970

E se eu lhe dissesse que a vida de João Alves Jobim Saldanha dava um filme neorrealista escrito por Vittorio De Sica e dirigido por Roberto Rossellini?

Você, com razão, dirá que estou delirando. Mas Saldanha era antifascista e esboçara um sorriso debochado. “Nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala a Seleção”, soltou o então treinador do Brasil, respondendo o ditador Emílio Garrastazu Médici que, fã do centroavante Dadá Maravilha, exigia-o no ataque do time. Como era de se presumir, a declaração não pegou bem e, pouco depois, o jornalista foi demitido.

Para o lugar do ex-treinador do Botafogo de Garrincha, Nilton Santos e Didi, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) nomeou, com a continência dos fardados, Mário Lobo Zagallo – um modesto e discreto ex-ponta-esquerda do Glorioso, entre 1958 e 1965. Zagallo curvou-se aos pedidos da caserna e convocou Dadá para a Copa, porém o artilheiro amargou apenas o banco de reservas durante todo o mundial. 

O regime, evidentemente, não poderia tolerar uma figura que militava no Partido Comunista voltar do México com a taça Jules Rimet na bagagem. Em entrevista ao programa Roda Viva, em 1985, Saldanha revelou que havia pressão do governo pela sua queda. “Médici nunca tinha visto o Dario jogar. Aquilo foi uma imposição só para forçar a barra. Recusei um convite para jantar com ele em Porto Alegre”, disse o treinador, disparando: “pô, o cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar.”

Entre os camaradas, nos anos de chumbo, Carlos Marighella: a morte do guerrilheiro deixou o já ex-treinador da seleção furioso. Mesmo com a alta popularidade no comando do escrete, Saldanha nunca fez vista grossa para as atrocidades de Médici e elaborou um dossiê, no qual documentava mais de 3 mil presos políticos, mortos e torturados pela ditadura, para ser distribuído no México durante os sorteios dos grupos da Copa de 70. 

Até aí, nada surpreendente. Na praia do Flamengo, após tentativa das forças policiais de tomar a sede da União Nacional dos Estudantes, Saldanha reagiu a um tiro com uma cadeirada e ficara com as costas perfurada por uma bala. Ferido, decidiu por sair do pronto-socorro com a camisa suja de sangue. Noutra ocasião, pegaram-no numa manifestação pelo monopólio estatal do petróleo e mandaram-no para o Departamento de Ordem Política e Social, na cidade de São Paulo, onde a barra pesou.

Ou seja, como escreve o jornalista Mário Magalhães no prefácio da biografia “João Saldanha: Uma Vida em Jogo”, de André Iki Siqueira, “cobriram-no de sopapos”. Essas peripécias levaram o escritor Nelson Rodrigues a definir Saldanha como “João Sem Medo”. E era. Ao ponto de, certa vez, o bicheiro Castor de Andrade dar um ‘agrado’ ao arqueiro Manga, do Botafogo, time treinado por João Sem Medo, e o clima se esquentar. De três-oitão em punho, estabeleceu quem mandava no pedaço. 

Cronista esportivo brilhante, com percepção de jogo que lhe credenciava como mais competente do que boa parte dos treinadores da época, militou sua crença sobre futebol nas páginas da extinta Última Hora, de 1960 a 1969. Também batucou textos no Globo, de 1970 a 1974, e Jornal do Brasil, de 1974 a 1990. Além da mídia gutemberguiana, comentava na Rádio Guanabara nos anos 1960 e, na década seguinte, Rádio Globo. Nos anos 1980, dedicou-se à Rádio Jornal do Brasil.

Geração de fãs

Foi no rádio, aliás, que seus comentários coloquiais e ácidos despertaram uma geração inteira para a complexidade do ludopédio. Sempre simples, numa linguagem acessível às pessoas de todas as classes sociais, Saldanha seduzia todo tipo de torcedor. Ouvi-lo era como puxar uma cadeira no botequim, pedir para o garçom uma cerveja, de preferência gelada, e tagarelar sobre a incompetência do treinador ‘y’ ou do jogador ‘x’.

Erudito (formado em direito) e popular (chegou a jogar profissionalmente no Botafogo), onde o futebol brasileiro estivesse e precisasse da visão singular do craque das palavras, ele ia: como foi, por exemplo, na incerteza coletiva que recaia sobre a pátria de chuteiras após o fiasco na Copa de 66. Saldanha assumiu o rojão e, ao lado das “Feras do Saldanha”, criara talvez o time mais artístico de todos os tempos.

João Saldanha era, para citar o tricampeão do mundo, Tostão, um craque ao aliar as ideias com as palavras. Fumante inveterado, morreu em 1990 durante a cobertura da Copa realizada na Itália. O gaúcho de Alegrete nascido em 1917, um revolucionário no conceito mais exato do termo, seja nas quatro linhas ou na militância pela ideologia da foice e do martelo, tornou o futebol brasileiro um espetáculo a ser aplaudido de pé.

Enquanto Tite, o atual comandante da seleção, não estrutura durante os 90 minutos nada além de Steven Spielberg: um jogo tecnocrata, repetitivo, conservador e nada agressivo. Sem contar, naturalmente, que o ex-comandante do Corinthians optou por ficar no disse que me disse na coletiva de imprensa concedida ontem, em Porto Alegre, antes de embarcar para Assunção, no Paraguai. Se fosse o João Sem Medo...

Tire suas provas dos nove com a obra “As Cem Melhores Crônicas Comentadas de João Saldanha”, clássico do jornalismo esportivo, com organização de Alexandre Mesquita, Cesar Oliveira e Marcelo Guimarães. E veja o porquê: “Mas esse tal de Gérson anda acabando com o jogo. É craque. Apesar de vinte anos, joga de cabeça erguida, conhece o assunto e ainda passa carão quando alguém “engrossa”’.

Pensando bem, não enlouqueci: João Saldanha dá um filme neorrealista escrito por Vittorio De Sica e dirigido por Roberto Rossellini.

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