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OPINIÃO

Grafite é arte?

Victor Hugo Lopes, Especial para Diário da Manhã

Semana passada, o cineasta David Lynch afirmou que o “grafite é feio, estupido e ameaçador”. Para ele, há mais criatividade em crochê. O diretor de Veludo Azul é artista plástico por formação, revolucionou as técnicas narrativas dos seriados televisivos e possui uma obra cinematográfica festejada. “O grafite arruinou o mundo”, disse em entrevista ao jornal inglês The Guardian.

A afirmação de David Lynch não passou batida. Houve quem protestaste sobre os comentários do diretor, que seriam, entre as palavras publicáveis, preconceituosos e desinformados. O cineasta foi atacado duramente nas redes sociais, chamado de ignorante e imbecil. Mas, considerando o contexto da afirmação, as críticas foram muito mais pesadas do que a suposta ofensa.

Ora, o grafite é uma técnica de intervenção na paisagem urbana com cores berrantes, traços bem marcados (às vezes até caricaturais) e, do ponto de vista temático, associado ao cotidiano de grupos sociais autodeclarados minorias marginalizadas ou “comunidades”. Diferentemente do trabalho de um artista plástico como Basquiat, o grafite raramente empresta alguma sofisticação ao seu conteúdo. Do ponto de vista clássico, talvez nem possa ser, ainda, considerado arte de fato.

Tornou-se um modismo “enfeitar” a paisagem urbana com painéis de grafiteiros.

Considerando as técnicas de colorização e detalhamento do grafite, há um excesso de informação visual que acaba degradando o meio ambiente urbano. Essa poluição visual sobrecarrega os sentidos de maneira agressiva e acaba se banalizando. Torna-se uma imposição de uma cultura urbana específica sobre a maioria. Logo, a aplicação excessiva de obras grafitadas pela cidade se torna democraticamente questionável.

Em praticamente duas décadas de capital, não me recordo de nenhuma intervenção urbana com reprodução de obras clássicas ou de artistas locais que utilizem diferentes técnicas artísticas. Não há murais de obras públicas com reproduções de Monet, Goya ou Caravaggio. Lembro-me de ver alguma vez uma ou outra reprodução de obras de Antonio Poteiro, Edney Antunes, Otto Marques, Siron Franco e Neusa Moraes em algumas oportunidades.

O grafite tornou o cotidiano das grandes cidades mais opressivo. Não é minha intenção é atacar ou atingir qualquer grupo social com este texto. Apenas me vinculo à corrente acadêmica de que o grande mérito da arte é transmitir sensações e mensagens por meio da sutileza. Há grandes artistas, verdade seja dita, que se valem da obviedade e até grosseria para se expressar, como Andy Warhol ou Marcel Duchamp. Mas há um sentido maior na obra de arte pura, algo que não consegue ser reproduzido. Uma aura, como bem observou o alemão Walter Benjamin.

Acusar David Lynch de ignorância é uma atitude excessiva. O grafite deve ser considerado uma expressão do pensamento e das sensações, mas deve ser visto com reserva em relação aos seus méritos artísticos. Para mera comparação, mal fazem 30 anos que os quadrinhos adquiriram status de arte. Talvez o grafite atinja esse patamar quando romper com essa pretensa “autenticidade de gueto” e discutir questões filosoficamente mais relevantes.

David Lynch denuncia que o grafite ocupou desproporcionalmente os espaços urbanos, tolhendo praças de seus traços originais e inserindo na paisagem das cidades um mundo multicolorido mais da poluição visual do que do debate artístico. A democracia deve conviver com todas as expressões artísticas. Espanta-me ver que nossa capital tem tomado o espaço de obras sacras, eruditas e populares (como a näif) em favor do grafite.

Não é, claro, um fenômeno localizado. As queixas de David Lynch sugerem que se trata de um problema urbano globalizado. Para que a arte possa se desenvolver enquanto expressão tangível do espírito humano é preciso abrir o espaço para a diversidade, em conformidade com o regime democrático, sem beneficiar cotas ou grupos sociais específicos. Se a arte é para todos, sua manifestação nunca deve ser de poucos.

(Victor Hugo Lopes, jornalista)

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