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OPINIÃO

Karl Marx versus Jean-Paul Sartre e Freud

Ney Gonçalves ,Especial para Opinião Pública

Até então Marx e o marxismo haviam sido considerados como contrários a todas as formas de pensamento “burguês”. Agora, porém, contando com o quadro mais completo da obra de Marx, muitos marxistas tentaram assimilar abordagens não-marxistas. Há dois exemplos marcantes disso. O primeiro é a obra do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. O existencialismo era uma defesa da liberdade do indivíduo que combinava um protesto contra a tendência de tratar seres humanos como coisas com uma forte insistência na realidade da responsabilidade humana. Em seu manifesto existencialista O existencialismo é um humanismo, Sartre escreveu “O homem simplesmente é. Não que ele seja simplesmente o que se considera ser, mas é o que quer ser, e como se concebe depois de já existir – como quer ser depois desse salto para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. Isso parece estar muito distante do marxismo, que põe em evidencia a maneira pela qual os seres humanos em massa, são determinados pela sua história e pelas circunstâncias sociais. Não obstante, como Sartre acabou sendo levado a considerar o marxismo como “a filosofia de nossa época”, procurou fundi-la com suas opiniões existencialistas. Isso exigiu “a reconquista do homem dentro do marxismo”, com o restabelecimento da dimensão humana do marxismo que havia no Marx da juventude, mas que foi eliminada mais tarde pela interpretação mais dogmática. O resultado foi uma obra maciça, como o titulo proibitivo de Crítica da razão dialética. Embora tortuosa e obscura, ela está cheia dos brilhantes insights e descrições psicológicas que sempre caracterizaram o trabalho de Sartre. Nela a ênfase ainda recai principalmente sobre o indivíduo. Como o próprio Sartre disse, numa frase notável, enquanto para o marxismo tradicional o poeta Valéry era apenas um intelectual pequeno-burguês, o marxismo existencialista gostaria de mostrar porque nem todo intelectual pequeno-burguês era uma Valéry. “Marxismo contemporâneo” escreveu Sartre, “perdeu totalmente o sentido do que é ser um homem; para preencher as lacunas, conta apenas com a psicologia de Palvov”. Com sua falta de qualquer dimensão historia séria, sua ênfase maior na liberdade do que na determinação e sua insistência em partir dos indivíduos, a obra de Sartre estava muito longe do marxismo clássico. Serviu, porém, para cristalizar muitas das tentativas bastantes vagas, na época, de descobrir “um marxismo com face humana”.

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A obra de Freud e de seus seguidores – nosso segundo exemplo- poderia parecer estar, à primeira vista, ainda mais em desacordo com Marx. A interpretação dada por Freud à sexualidade inconsciente e infantil levava a uma explicação da atividade humana muito diferente da determinação pelo econômico de Marx. Para Freud, o marxismo parecia mais uma racionalização que disfarçava as molas fundamentais da ação humana; e os marxistas há muito rejeitaram o freudismo como um produto ideológico da Viena do fim de século. Mas um dos discípulos de Freud, Wilhem Reich, era também marxista, e ressaltou a necessidade de libertar o proletariado da repressão em todas as esferas de vida – em particular, a sexual. Reich afirmava que a única maneira de resolver os problemas edípicos descobertos por Freud era a dissolução da família de classe média. Reich tinha confiança nas mulheres e nos jovens que, como mais dominados do que o resto da sociedade, tinham melhores possibilidades de ver através da mecânica da repressão. Mas Reich não gostava de Lenin. Em sua opinião, o bolchevismo preparou o caminho para o fascismo, reforçando o autoritarismo nos partidos e sindicatos. Em uma série de conferências que realizou na União Soviética no final da década de 1920, sugeriu que, sem a revolução sexual, o comunismo degeneraria num Estado burocrático.

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Isso bastou para convencer as autoridades soviéticas a proibir a psicanálise, que havia desfrutado de certa voga na Rússia. Caluniado tanto pelos comunistas ortodoxos como pelos psicanalistas ortodoxos, Reich foi uma voz solitária. Eric Fromm, autor prolífico e popular, começou a vida como freudiano e como marxista, mas, ao produzir sua obra influente, O medo à liberdade, por exemplo, em 1941, já havia superado a ambos. Foi Marcuse que produziu em seu Eros e civilização, a tentativa mais consistente de unir Marx e Freud. Seu estudo dos obstáculos psicológicos à libertação levou-o a um radicalismo utópico. Freud considerara a repressão sexual na sociedade como eternamente necessária, devido ao conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Mas, para Marcuse, era a organização social do trabalho na sociedade capitalista que subordinava os instintos à realidade. Com o progresso da tecnologia, essa repressão, justificada em condições de escassez, tornou-se desnecessária e abriu-se o caminho para uma sociedade que podia passar sem repressão, abolindo o trabalho alienado. Tal opinião afasta-se da intenção original de Marx, e qualquer casamento entre este e Freud resultou sempre no predomínio de um sobre outro. Afinal de contas, Freud rejeitou Marx explicitamente, com a simples afirmação de que “a agressão não foi criada pela propriedade”.

(Ney Gonçalves, escritor e pesquisador, autor dos livros: Valor e Crise, Marxismo, Estado e Crise do Capital e Introdução ao Marxismo e Conceitos Básicos da Analise Econômica Marxista (no prelo, Ed. Expressão Popular).

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