Dias atrás, ouvi de um amigo:
– Você salvou minha pele.
– Eu?
– Você.
– Certeza?
– Absoluta. Muito obrigado.
– Não me recordo de tê-lo feito.
– Mas o fez.
– Bom, de nada.
Não tenho vocação para herói – nem acredito que meu cérebro esteja tão detonado a ponto de não me recordar de algo tão solene. Comecei a considerar as possibilidades. Eu seria um sonâmbulo? Verdade que acordo meio cansado, mas sempre creditei à apneia ou ao sono leve. Ou estava completamente desnorteado?
Meu amigo continuou conversando sobre outros assuntos. A pulga começou a sugar meu sangue atrás da minha orelha. Nestas ocasiões, é como se a aba do escutador fosse uma boca livre coletiva para artrópodes famintos. E nada de oportunidade de retomar o assunto. Bom ouvinte, tentava conduzir a prosa ao ponto de origem.
Enquanto o sujeito ia desenhando telas à minha pessoa, retinha-me à solidão dos meus pensamentos. Minha mulher costuma dizer que, nestas circunstâncias, fico com o olhar perdido no tempo e espaço, como se eu ligasse dentro da cabeça um macaquinho a bater pratos. Até vir o cutucão:
– Você prestou atenção no que eu disse?
– Completamente.
– Você pareceu-me distraído.
– Eu tenho cara de sonso.
– Não parece.
– Desculpe-me. Não era minha intenção parecer-lhe desligado.
De fato, não era. Sujeitos discretos tendem a não se meter demais nas coisas dos outros. Eu queria saber qual teria sido o gesto heroico pelo qual recebera cumprimentos. Mas era difícil resgatar o assunto. Vez ou outra, até dava um passo neste sentido, mas o companheiro tinha novidades demais. Parece até que não o via havia anos – não devia ser mais que algumas semanas.
Jornalista tem comichão quando está curioso. Meu pai costuma dizer que a curiosidade matou o gato – embora nenhum trocadilho caiba à frase. Decidi que tomaria as rédeas da conversa. Era hora de me impor em alguma coisa. Poderia inclusive ser apenas pura gozação do chegado. Como escreveu certa vez o repórter Renato Terra, da revista Piaui, em rio que tem piranha macaco bebe água de canudo.
– Gostaria de lhe fazer uma pergunta.
– Fique à vontade.
– Você disse mais cedo que eu o havia salvado.
– Verdade.
– Como foi isso?
– Eu sabia que você não ia resistir em perguntar.
– Como assim?
– Eu te conheço, cara.
– Tudo bem. Só que conta que troço é esse.
– Todas as sextas-feiras, você me salva o pescoço com suas crônicas.
– Não entendi.
– Quer que eu desenhe?
– Não precisa ofender.
– Sem problemas. O que está ao lado do seu texto na página do jornal?
– A coluna Geleia Geral, do Pampinha. Ótima, por sinal. Mas não entendi ainda.
– O Pampinha é mito. O que tem na coluna?
– Notinhas, uai.
– Só isso?
– Ah...
– Entendeu?
– Entendi. Mas como eu te salvo?
– Toda vez que minha mulher me pega no flagrante, eu digo que estava lendo seus textos...
(Victor Hugo Lopes, jornalista)