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OPINIÃO

A gostosa e riquíssima semântica de Goiás e do Tocantins

Lendo e relendo as obras de Carmo Bernardes, Hugo de Carvalho Ramos e do nosso Bariani Ortencio, que considero nosso maior regionalista vivo, detive-me recentemente no seu “Dicionário do Brasil Central”, e vi que Goiás e o Tocantins são particularmente bafejados pela beleza de uma semântica peculiar. No campo do significado das palavras, nosso manancial é particularmente rico, onde se ouvem palavras cuja acepção foge completamente ao significado normal. Até me arrisquei a escrever um “Dicionário Tocantinense de Termos e Expressões Afins”, coincidentemente enriquecido com um belo prefácio de Bariani Ortencio nos idos de junho de 1996.

Garimpei nas muitas páginas de vários autores e extraí palavras que são usadas no interior com acepção incrivelmente diversa da usual, e vamos dar exemplos, neste inusitado glossário que aqueles que vieram do interior irão saborear como reminiscência.

Para o matuto, “acesso” é desmaio; “açoitar” é atirar; “afogado” é refogado; “alegar” é ficar reclamando de um favor que se fez; “animal”, na fazenda, é só o de montaria e de carga; “anjo” é o caixão com o defunto quando criancinha; “arrastar” é engatinhar (a criança); “artista” é quem exerce um ofício (marceneiro, sapateiro); “ataque” é o mesmo que “acesso”; “atentado” é traquinas, arteiro; “banana” é o bovino com os chifres caídos; “bandoleiro” é o cachorro que acompanha qualquer pessoa; “barrado” é uma espécie de tecido ordinário com que se faz colchão; “bastidor” é um círculo duplo de madeira usado pelas bordadeiras para esticar o pano; “batida” é a pegada, o rastro de alguém ou alguma caça; “batizar” é adulterar qualquer líquido (água no leite, por exemplo); “berro” é o revólver; “boneca” é a espiga de milho em formação; “borracha” é o odre de couro para se levar água; “bruto” é o nome que se dá ao araticum (havendo dois tipos: o de tamanho grande, que é o bruto verdadeiro, e o rasteiro, o bruto cagão); “caixa” é o nome que se dá ao tambor nas folias; “canja” é o arroz branco cozido só na água, sem sal e tempero; “carrinho” é o nome que se dava ao carretel de linha; “casal” era o conjunto de dois pratos ou de garfo e colher; “centenário” é  qualquer moeda; “charlatão” é o manipulador de remédios; “chama” é o passarinho preso no alçapão para atrair o que se quer capturar; “chocolate” é  a gemada; “churrasco” não é  esse assado na brasa, mas a carne frita misturada com farinha de mandioca, a farofa, a também chamado “frito”; “cifra” era o nome que se dava ao zero na tabuada;  “compadre” era o nome genérico dos índios, também conhecidos por “tapuios”; “comunismo” é  aquilo que não tinha regra ou dono; “consolo” era a chupeta dos bebês; “curado” era quem estava imune a feitiços e mau olhado; “curador” era quem benzia e curava males; “decretado” é algo feito de forma especial (mandar alguém decretado); “delatar” é  demorar; “demente” é o menino dengoso; “desapertar” é ir ao banheiro ou à latrina, ou conseguir algum dinheiro; ”descansar” é parir, dar à luz; “desmentir” é luxar, desconjuntar; “devoluto” é sem governo, criado à vontade; “dianteiro” é o carro-de-bois com carga mais pesada na frente; “direito” é semelhante (a sombra era direito um fantasma); “divulgar” é ver claramente (“não consegui divulgar quem era”); “encanar” é firmar com talas um membro fraturado; “entupido” é empachado, que não consegue defecar; “esbarrar” era parar (“ele chegou tarde porque esbarrou muito na estrada”); “escorrido” é o cabelo liso; “escoteiro” é o animal que é levado como reserva, e também é o café tomado sem qualquer acompanhamento; “escrito” é o mesmo que “direito”; “esperto” é  entre morno e quente; “espião” era aquele que ficava vendo alguém comer, desejando também;  “espoleta” era a criança hiperativa, muito esperta; “espora” era intrometido; “esquecido” é uma parte do corpo dormente, sem movimento; “estandarte” era o mesmo que bagunça, espalhafato; “excelência” (ou “incelência”) eram rezas e cânticos especiais; “exemplar” era castigar, dar o exemplo; “faltar” é morrer; “fato” são as vísceras sem o bucho; “feito” era o mesmo que igual (“ele ficou feito besta”); “ferramenta” eram também os talheres; “fino” é cheio de sutilezas, que se irrita à toa;  “frigideira” era omelete; “fuzil” era o pedaço de aço que tirava a fagulha da pedra no papa-fogo para acender a isca; “garra” é qualquer pedaço pequeno (de pano, de terra); “gás” era o querosene; “gastar” era especialmente consumir fumo; “inteiro” era o animal não castrado; “invernar” era ficar dias e dias bebendo; “isca” podia ser o algodão do papa-fogo ou o acompanhamento do café; “jeito” e “gosto” têm a conotação de ruim (meu pescoço deu um um jeito; “esta água está com gosto”); “lâmpada” era como se conhecia a lanterna a pilha; “lapa” denotava coisa grande (lapa de pé, lapa de chão); “libra” significa 500 g, meio quilo; “livro” é o bucho bovino quando aberto, devido à semelhança de suas divisões com folhas de um livro; “madre” é o útero, a placenta; “maduro” é um refrigerante caseiro preparado com laranja-da-terra; “malhada” é o lugar limpo, umbroso e plano, onde o gado costuma pernoitar remoendo; e é também coco macaúba que é expelido pela rês após remoído, “maloca” é um magote de gado que costuma reunir-se sempre no  mesmo lugar da fazenda; “maneira” é abertura lateral da roupa feminina, notadamente a saia e o vestido, para facilitar o vestir; “marca” é, além do instrumento para ferrar o gado, uma espécie de botão de osso próprio para a braguilha; “moça” era sinônimo de virgem; “movido” é pequeno; murcho; chocho; que não cresceu ou não se desenvolveu; “nascida” é o nome que se dá ao furúnculo; “navegar” é trafegar, viajar; “norma” é o padrão de manuscrito que se escreve para ser seguido por quem deseja melhorar a letra; é o mesmo que “pauta”; “olho” é o mesmo que “nascida”, e também a parte da ferramenta oposta à lâmina (machado, enxada); “palanque” é um poste ou moirão grosso e forte, geralmente de aroeira, para cerca de arame; “pano” é manta de toucinho; “peçonha” é o primeiro leite que a vaca produz, logo após o parto, e que vem com rajas de sangue; colostro; “penso” é torto; fora do eixo de equilíbrio; “plataforma” é o mesmo que presepada; “poesia” é o elogio a si próprio; gabação; “positivo” é missão; pessoa com incumbência específica; “prato” é uma medida de capacidade para produtos a granel, equivalente a dois litros; “precisão” é qualquer necessidade; “preguiçosa” é espreguiçadeira; “preguiçoso” é escasso (de caça, de peixe); “provocar” é ameaçar vômito; “prosódico” é provocador; “puxado” é sinônimo de asma, dispneia; “quadra” é época; “quarta” é uma medida de capacidade, equivalente a 20 litros; de extensão, que equivale a ¼ do metro (25 cm), e de peso, valendo ¼ do quilograma (250 g). “romper” é prosseguir; “salvar” é saudar, cumprimentar; “sambar” é ficar indeciso; “seco” pode ser vazio ou sedento; “seguro” é sovina; “selado” é pessoa ou animal que possui a coluna vertebral recurva, semelhante ao contorno de uma sela; “sentinela” é velório; “sistema” é mania (daí, sistemático); “solteiro” é o gado que não está com cria; “sotaque” é gozação; chiste; “sucesso” é acidente, desastre; “tara” é o pente recurvo de atracar os cabelos e também chamado “travessa”; “tarefa” pode ser medida de extensão, equivalente a 80 braças, sendo também uma espécie de castigo a que se submetem crianças gulosas, fazendo-as ingerir, até repugnar, o alimento de cuja pequena quantidade re-clamara; “toque” é o empanturramento no  bucho do gado, provocado pelos grãos de areia, que, com os respingos das primeiras chuvas, aderem ao capim que é ingerido; “torneira” é um cabide múltiplo de parede para dependurar chapéus; “torto” é o animal de montaria que tem as patas tortas; “transar” é trocar cheque pro pagamento, “tubo” é como a costureira chama o retrós; “urubu” é a mancha no foco da lanterna devido à fraqueza das pilhas, “usina” é uma expressão que indica enorme valor; “vadiar” é brincar, sem conotação de vagabundear; “variado” é tonto; sem noção de espaço, tempo ou distância, “vazio,” é parte da barriga sem ossos onde ficam os intestinos; “vivo” é friso, detalhe na roupa, “volta” é colar, podendo ser também o dinheiro que se recebe em uma troca de coisas.

Como se vê, o nosso vocabulário, que está caindo no esquecimento, precisa ser lembrado. Ou morrerá.

(Liberato Póvoa, [email protected] (Desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado)

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