Opinião

Inversão de paternidade (Uma reflexão)

Redação

Publicado em 12 de junho de 2015 às 03:55 | Atualizado há 10 anos

 

 

Todo homem precisa saber, mas confesso que demorei a entender que no curso de nossa existência neste paraíso a paternidade, de forma quase invisível, inverte de posição. Na verdade, o ciclo familiar sofre rupturas ao seu final que modificam a sua história, isso ocorre quando a idade se acumula, e alguns alcançam o final da linha e por ordem natural, os mais velhos se vão para outro plano. Ou também, quando a inversão de paternidade ocorre e aí a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seus pais. Quando os pais envelhecem e começam a medir os passos, a se levantarem da cadeira e pensar por alguns segundos antes de iniciar a caminhada como se não soubesse para onde ir ou se estivessem no início do aprendizado; lentos, devagar, imprecisos, medrosos ou em trotes inesperados. Nesta fase, o pai ou a mãe que quando jovem segurava com força na mão do filho, que o carregava nos braços, que o alimentava, que o aquecia com o calor de seu próprio corpo, já quase não pode se locomover sozinho, enxerga pouco, está perdendo a audição e se desequilibra facilmente. É quando o pai ou a mãe, antes tão firme e intransponível enfraquece, não se entrega, mas quase sempre demora o dobro da respiração para sair de seu lugar, demora minutos para caminhar da sala até a cozinha, da sala até o quarto, do quarto até a sala de banho, ou para continuar no trono de chefe da família tenta trotar e se desequilibra, por vezes cai e se machuca por conta da osteoporose, da falta de vigor muscular ou da pele flácida. É aí que o filho deve perceber que seus pais, que durante muitos anos mandavam e ordenavam, não batiam, mas por vezes ameaçavam, hoje só suspiram, só gemem, sentem dores generalizadas, pedem socorro, têm dificuldades de saber onde é a porta e onde é a janela: parece que tudo é corredor, tudo está escuro, tudo é muito longe. E, deve o filho perceber que seu pai ou sua mãe, antes ágil e preciso, disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrar onde deixou, ao precisar usar fraudas ou roupas íntimas descartáveis, ao necessitar de ajuda para se banhar, ao terminar de aquecer uma comida e deixar o fogão aceso, ao abrir a torneira para lavar as mãos e se esquecer de fechá-la. E, como filho não pode fazer outra coisa senão aceitar a inversão de papel e entender que é responsável pelos seus pais, pelo zelo de sua saúde e envelhecimento com qualidade de vida. Qualidade de vida daquele e daquela que lhe gerou e que agora depende de sua ajuda, de sua boa vontade, de sua paciência e de seu carinho para continuar vivendo em paz. Todo filho precisa saber transformar-se em pai de seus pais, no momento certo, ou melhor, precisa saber que a velhice do pai e da mãe, pode ser sua última fecundação ou gravidez, mas também pode ser um exemplo paras os seus filhos, para que no futuro tudo lhe seja por eles devolvido, se necessário. Essa é a fase apropriada para o filho devolver aos pais os cuidados que lhes foram confiados por eles ao longo de décadas, de retribuir a eles o amor, o carinho, a amizade e os gestos de preocupação. Assim como se muda a casa para proteger os filhos crianças, tapando tomadas, colocando almofadas nas cadeiras, cercadinhos no chão e música de ninar para bem criá-los, deve o filho alterar a sua rotina diária para bem criar os seus pais idosos. E a primeira transformação acontece nos banheiros. Deve o filho agir como pai de seus pais na hora de fixar barras nos boxes, colocar tapetes antiderrapantes e bancos de banho. Todos esses equipamentos são úteis para os que estão agora desaprendendo; perdendo forças e equilíbrio, sensibilidade, coragem e habilidade. A água que desce do chuveiro: antes agradável e refrescante, não pode jorrar muito forte, não pode ser quente, mas também não pode ser fria, agora parece um temporal para os corpos cansados de seus pais, fazendo aquaplanagem em seus delicados pés. Deve o filho compreender que não pode abandonar seus pais em nenhum momento, se necessário, deve inventar seus braços nas paredes. Agora a casa de seus pais precisa ter seus braços abertos e sempre presentes. Seus braços haverá de estarem espalhados, sob a forma de corrimões, bengalas, andadores e muito mais. Não pode esquecer de que quem envelheceu anda de mãos dadas com os objetos e perto do perigo; envelhecer é subir escada sem degraus, é perder a profundidade do túnel, é se sentir diante do abismo e se aproximar do fim. Não pode alterar o local de suas coisas para não deixá-los em desespero ou como estranhos no ninho. Deve observar cada detalhe com preocupação, com pensamento voltado ao conforto deles igualzinho ao que fizera para os seus filhos no passado. Como pai dos próprios pais o filho precisa ser médico, enfermeiro, arquiteto, decorador, marceneiro, eletricista, encanador, motorista e doméstico; amigo e protetor sem frustrações, porque é dessa forma que eles veem o filho para resolver suas necessidades. Mas, sobretudo precisa ter a paciência que se faz necessário ter com aqueles que dependem de sua ajuda. Tem que respeitá-los, ouvi-los com atenção, valorizar suas atitudes, entender suas travessuras, acolher com reservas suas reclamações, explicar o que não se pode fazer sem repreendê- los. Se como pai tem toda paciência e tudo faz em prol de seus filhos, aceita tudo que fazem os seus netos, protege seus sobrinhos e ampara crianças ainda que filhas de outrem, não há como deixar de cuidar de seus pais idosos como se filhos fossem. Deve prever que seus pais idosos adoecem, sentem dores generalizadas, sentem medo de ficar sozinhos, sentem medo de morrer e ficam deprimidos facilmente, por isso precisam da sua ajuda constante. O filho não pode sentir vergonha de pegar seus pais no colo, até porque, quando idosos já estão pequenos, frágeis, trêmulos e obedientes como se seus filhos fossem. “O filho se pega no colo e faz-lhe carinho com a barba, o pai idoso se pega no colo e faz-lhe a barba com carinho.” Certa oportunidade li um conto de um autor desconhecido em que ele afirmava que “Seu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira: Deixa que eu ajude. Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia sussurrando: Estou aqui, estou aqui, pai!” Essa, foi uma prova de aceitação de inversão de paternidade. Os pais quando já idosos perguntam tudo, repetem a pergunta por várias vezes, contam as mesmas histórias vários dias seguidos, têm a mesma curiosidade de uma criança ou de um adolescente. Pensam muito mais nos filhos que neles próprios, porque se recordam melhor do passado longínquo, exatamente quando seus filhos eram crianças. Mas o que os pais querem quando pensam que estão chegando ao fim da vida, é apenas ouvir a voz do filho e saber que ele está ali ao seu lado. E feliz do filho que é pai de seu pai ao final de sua existência e triste do filho que não aceita essa situação e minimiza a realidade, porque eventualmente fará tão somente uma despedida, perdendo a oportunidade de se despedir todos os anos, todos os meses, todas as semanas e todos os dias.

 

(Avenir Passo de Oliveira, juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Goiânia)

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