Opinião

A “ceia dos cachorros” e a “tarefa”, costumes que, por culpa do progresso e da carestia, já não existem mais

Redação DM

Publicado em 10 de julho de 2015 às 23:13 | Atualizado há 10 anos

Certa ocasião, num mês de junho qualquer – eu era menino de calça curta – assisti a uma inusitada cena na casa de meu padrinho Otavinho: estenderam um couro de boi no terreiro e espalharam grande quantidade de carne, suculenta ossada e boa comida. Depois, as pessoas se afastaram para não “constranger” os convidados do banquete: os cachorros. Alguém estava ali pagando uma promessa a São Lázaro.

O “Dia de São Lázaro”, protetor dos leprosos, não se comemorava com as rezas, terços e benditos, em paga de promessa por graças recebidas, pois os grandes homenageados eram os cachorros. Segundo a parábola contada pelo evangelista Lucas, havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, sempre deitado à porta do rico. E avidamente matava a fome com as migalhas que caíam da mesa do abastado, e os cães iam lamber-lhe as chagas para atenuar o sofrimento pelas coceiras.

Este mendigo, chamado Lázaro (que não deve ser confundido com o Lázaro de Betânia, irmão de Marta e Maria, ressuscitado por Jesus), é o único personagem que possui nome próprio em todas as quarenta parábolas de Jesus. Por causa disso, muitos teólogos e estudiosos supõem que ele realmente tenha existido. A tradição da Igreja Católica venera-o como santo protetor dos males da lepra e padroeiro dos mendigos, celebrando sua festa em 21 de junho.

Alguns usam a parábola de Jesus sobre o “homem rico e Lázaro”, para provar que o tormento que espera o pecador após a morte é um inferno de fogo. Na verdade, a ameaça de um inferno no além é também uma espécie de freio às más ações.

O “homem rico” caracterizaria os fariseus, e o “seio de Abraão” é o lugar de honra no banquete presidido pelo pai dos crentes, negado ao homem rico, mas admitido ao pobre Lázaro. As mortes do homem rico e de Lázaro – igualmente simbólicas – representariam um aceno para mudanças no comportamento das pessoas.

Contudo, menciona-se também aqui a interpretação aceita por grande parte do ramo evangélico do cristianismo, em que, na verdade, esta não seria uma parábola, mas uma história real sobre um acontecimento com personagens reais.

Em decorrência disto, ficaram firmadas algumas bases doutrinárias, como a antiga existência do Mundo dos Mortos, dividido em dois locais distintos, separados entre si por um abismo sem fundo: o “seio de Abraão”, onde se reuniam as almas dos mortos salvos na esperança do verdadeiro paraíso, sob o comando do Pai Abraão, e o Inferno, propriamente dito, onde estavam reunidas as almas dos perdidos, como o rico da parábola. Durante a morte física de Jesus Cristo e sua descida ao Inferno, mencionada no Credo, ele resgatou todas as almas dos salvos no “seio de Abraão” e as transportou para o Paraíso, onde Dimas, o ladrão arrependido e companheiro de Cristo na cruz, já as aguardava.

Mas o que chama a atenção é o fato de tal costume da “Ceia dos Cachorros” haver desaparecido, a exemplo do que chamávamos de “tarefa” (espécie de castigo a que se submetiam crianças gulosas, fazendo-as ingerir, até repugnar, o alimento de cuja pequena quantidade reclamara). Se um filho ficasse reclamando que só tinha ganho um pires de doce, por exemplo, o pai (ou a mãe) mandava fazer uma panela do tal doce e obrigava o reclamão comer tudo, sob pena de levar uma surra, pouco importando se lhe adviesse uma indigestão, para aprender a não reclamar mais. Típico ato de ignorância e irresponsabilidade, comum no interior da época. Era o que se chamava “fazer tarefa”.

Mas o que deve ter sepultado a “ceia dos cachorros” e a “tarefa” não foi motivo religioso ou moral, mas a carestia das coisas, que não permite mais essas graças.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

 

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