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Fora de Lugar - Parte III

Fora de Lugar - Parte III

Caso de Polícia


por Rafael Saddi

É estranho como um pequeno acontecimento, um tropeção, uma casca de banana, um pequeno buraco no meio da rua, pode nos fazer levar um tombo imenso e dali, do chão, enxergar o mundo de um ponto de vista completamente diferente.

Depois de bater, bater e bater muito com a vara na espinha de Victor, o professor Marcos se sentia bem. “Garoto atrevido”. Gritara. “Você me seguiu no ponto de ônibus, não foi?”. Uma varada. “Você escreveu aquela ameaça no vidro do meu carro, não é mesmo?”. Outra varada. “Você ainda ironicamente me perguntou no outro dia se eu havia recebido o seu recado, não é?”. Mais uma.

Os olhos do garoto, cheios de lágrimas e estatelados como quem encara o próprio desespero, não causaram em nenhum dos corações ali reunidos qualquer sentimento de piedade. Já não era um garoto, mas um marginal, um bandido.

Era grandioso ouvir o som dos aplausos que saíam das mãos entusiasmadas dos professores depois de cada movimento violento dos braços de Marcos contra o corpo desajeitado do garoto.

E embora todos os professores ali estivessem reunidos sob o pretexto de educar, não era bem isso que Marcos sentia. Não queria ensinar nada a Victor. Em cada pancada, em cada barulho da espinha do garoto contra a vara agressiva, um doce e singelo sentimento de segurança lhe invadia o peito. Queria puni-lo, simplesmente puni-lo, por todo o desespero e medo que sentira nas últimas semanas. O poder, ah, o poder que não sentia mais em sala de aula rodeado por delinquentes perigosos e armados, por fim lhe enchia a cabeça.

Ao ver o garoto caído no chão, se contorcendo, Marcos entregara a vara para o diretor. E vitorioso, como prêmio, sentira os lábios doces e singelos de Mariana no lado direito do seu rosto.



Em casa, na cama, segundos antes de fechar os olhos, lembrara que há muito tempo não abria o seu escaninho na escola para conferir as correspondências. Se fosse ontem, se preocuparia com a possibilidade de ter ali um diário, um documento, ou qualquer coisa para preencher ou assinar. Mas, não naquela noite. Naquela noite, dormira tranquilo como há muito tempo não fazia.

No outro dia, se dirigira até a sala dos professores. Mas, no escaninho, não havia papéis burocráticos. Ao contrário, estava ali um pequeno pedaço de papel de caderno rasgado, aonde se lia:

“Desculpa professor por ter atrapalhado a sua aula hoje. Gosto de você e não vou mais me comportar mal. Assinado: Victor”.

“O recado”. Pensou Marcos. “Era esse o recado que Victor perguntara se eu havia recebido. Não era o que estava escrito no vidro do meu carro”.

É mesmo estranho como um pequeno acontecimento, um tropeção, uma casca de banana ou um bilhete no fundo de um escaninho velho pode mudar tudo. Tudo. Fora mesmo seguido ou estava paranoico? Fora ou não fora Victor quem rabiscara com os dedos o vidro traseiro do carango? Nada disto importava mais. O bilhete, o pequeno bilhete lhe fizera ver o quão tudo era absurdo. “Em que estamos nos tornando?”. Pensou. “Com que direito espancamos um aluno?”.

Pegou o bilhete e se dirigira à sala do diretor, que deitou os olhos sob o pequeno pedaço de papel que agora tinha em mãos e sorriu: “Marcos, você não entende. Se não foi Victor, há sempre um outro. Os jovens de hoje não obedecem nem pai, nem mãe, nem professor. Há uma completa decadência da moral e dos bons costumes. Precisamos discipliná-los”.

“Mas, veja, seu João, esse discurso que reduz os problemas da educação ao problema da disciplina, da obediência e da autoridade, é antigo. É tão antigo quanto a própria instituição escolar. Quando uma lei de 1827 proibiu os castigos físicos na escola, muitos pais e professores ficaram revoltados. Do que reclamavam? Da ausência de disciplina, de obediência e de autoridade. Não me venha dizer que os valores se perderam, que há uma decadência da moral e dos bons costumes, que na nossa época não era assim. Se você ler os jesuítas, verá que essa ideia já aparecia em seus discursos há pelo menos 04 séculos. E tenho certeza que você, apesar de pensar como um velho, não vivera tanto assim para me contar. Não percebe que os militares deram um golpe neste país utilizando justamente este discurso? É um discurso antigo, João. Além do mais, estamos falando de um único caso aqui”.

“É claro que é um discurso antigo, Marcos, e que estamos falando de um único caso. Mas, você ainda não entende, Marcos. Só precisamos de um, de um único caso para construir uma grande narrativa. Toda a grande verdade das coisas só existe no modo como colocamos os termos do discurso. Se fizermos os professores, os pais, e muitos outros reduzirem todos os problemas da educação ao antigo jargão ‘os jovens de hoje não obedecem’, então a solução já está implícita.

E há algo mais, Marcos. Algo completamente novo. Estamos promovendo o encontro deste discurso velho com os novos discursos sobre segurança pública. As crianças não são simplesmente desobedientes, como reclamavam os professores de outrora. São, agora, delinquentes, criminosos, armados e perigosos, como reclamam os professores de nosso tempo. A palmatória seria capaz de enfrentá-los? Estamos somente na primeira etapa do nosso projeto. Devemos, em breve, clamar não por palmatória e por chicotes, mas por fuzis e metralhadoras. Mas, saberíamos nós professores utilizá-los? Clamemos pelos militares. A questão educacional, meu caro Marcos, agora é caso de polícia”.

E o diretor se abaixou para pegar algo debaixo de sua mesa. “Aliás, não é só os alunos que precisam ser disciplinados. Você tremeu diante de um pequeno jovem. O quanto não será capaz de se adequar diante do poder de verdade?”. Nas mãos, uma metralhadora preta mirada para a cabeça do jovem professor.

continua...

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