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OPINIÃO

A companhia e um poema ilustrado

Maria Eduarda costumava isolar-se quando queria interagir com o jardim ou entreter-se com seus amiguinhos invisíveis, quando não para conversar sozinha ou criar desenhos fantásticos de representação simbólica do seu mundo imaginário.

No mais, sempre precisou de companhia. Para as refeições, para as tarefas escolares, para os brinquedos no parquinho e até mesmo para dormir, de preferência junto com o vovô e a vovó, que servem de escudo para suas navegações noturnas.

É próprio das crianças índigo espelhar seu eu singular no eu plural em que os outros eus projetam sua individualidade, angariando adeptos para o testemunho coletivo de suas manifestações anímicas. O seu ponto de apoio seria o da ponte de intersecção entre dois mundos, como entre interior e exterior, como entre o céu e a terra.

Lá pelos dois aninhos de idade, já tinha o poder de reunir todos à sua volta, aboletada no colo do vovô e articulando gestos de comando como um maestro a dirigir a orquestra: devíamos todos cantar ou aplaudir conforme ditava o ritmo de suas vibrações.

Maria Eduarda sempre gostou de atividades em grupo e principalmente de festas de aniversário ou de casamento em que fosse ela aniversariante ou a dama de honra. Nessas ocasiões não se separando de uma flor pendente e sempre atracada aos seus cabelos, numa espécie de auréola de anjo.

Ninguém que a tenha visto nessas circunstâncias festivas dispensaria sua presença como atração principal, ou como compensação caso não houvesse o milagre da multiplicação dos pães e do vinho.

Emílio Vieira 01

Um poema ilustrado

Desde cedo aprendi a ver as coisas invisíveis com Maria Eduarda transportando-me a espaços metafísicos em suas incursões cósmicas. As representações simbólicas lhe atraem mais a atenção do que as imagens dos objetos comuns. Assim é que sempre viajamos por mundos imaginários e suas historinhas me despertam lembranças de outra vida em algum lugar esquecido.

Certa feita, sentado próximo a uma janela aberta ao fundo de um velho casarão, em Posse, eu contemplava Maria Eduarda que brincava ali no pátio interno, e sua imagem inspirava-me uma composição poética. Por sua vez, ela se postava a uma certa distância, inclinada a desenhar sobre uma mesa redonda e a cada instante volvia o olhar para mim. É como se controlássemos a mente um do outro: ela olhava e eu parava de escrever, eu olhava e ela parava de desenhar.

Ao cabo de algum tempo, concluímos nossas figurações e ela se aproximou, como sempre fazia, mostrando-me o desenho que acabara de esboçar: vi que era igual ao que eu descrevia no meu esboço poético. Eu me projetava nela vendo-me criança quando brincava sozinho no meu quintal primitivo, onde conversava com as formigas que passavam em fila levando folhas verdes às costas, como se fossem depositá-las no oitão da casa.

Ela por sua vez se projetava em mim criando um desenho que era a representação de seu estado de espírito, enchendo de borboletas e flores aquele espaço vazio.

Vi que o entretenimento buscado por ela naquelas circunstâncias, compensava a ausência de sua mãe e de suas coleguinhas de brinquedo, tal como eu me sentia insulado no meu antigo quintal da infância, longe dos olhos de minha mãe.

Olhamo-nos e rimos, reconhecendo-nos intuitivamente como dois transeuntes de um mundo em que eu por ela sentia saudade de mim e ela por mim sentia saudade de si mesma, quem sabe vindo de um espaço metafísico que era seu éden de sonho e poesia.

Somos iguais

Somos iguais

quando te vejo feliz e singular,

como feliz e sozinho eu era

quando criança.

Somos iguais como almas

de pássaros cativos

que cantam nas gaiolas

distantes dos seus ninhos.

Somos iguais perante o infinito,

quando sentimos

saudade de nós mesmos

nos caminhos do céu.

Enquanto a vejo expandir sua imaginação em espaços cada vez mais amplos, prefigurando imagens por mim ainda desconhecidas, estou sempre voltando aos meus quintais da infância por influência de suas ilustrações poéticas.

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa - Email: [email protected])

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