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OPINIÃO

A mediunidade perante a lei

Há cerca de 22 anos, escrevi o livro João de Deus, o fenômeno de Abadiânia, que vem tendo sucessivas edições, e anos atrás o amigo Ismar Estulano Garcia me surpreendeu, ao trazer de Berlim um exemplar de Das Phenomenon von Abadiania, que era exatamente minha obra traduzida para o alemão.

Isto não deixa de ser gratificante, mas a doutrina kardecista costuma ser combatida pelas religiões tradicionais, principalmente as evangélicas, por talvez desconhecerem o que seja a mediunidade.

Sob a ótica da lei, o curandeirismo é crime. No entanto, entendemos que no caso de espíritas que, através de incorporações, buscam curar seus semelhantes sem lograr o auferimento de lucros, a lei deveria fazer uma ressalva. Punir criminalmente uma pessoa pelo simples fato de praticar o bem é uma visão distorcida da realidade.

A jurisprudência é quase unânime em condenar o espiritismo, de forma até mesmo implacável, considerando crime até mesmo os passes que são ministrados, exatamente porque a letra fria da lei estabelece que até mesmo os gestos e as palavras constituem curandeirismo.

No entanto, apesar disso, já se observam julgados de respeitados tribunais que reconhecem não serem crime os atos praticados pelas entidades quando incorporadas, e um exemplo disso é o julgamento proferido pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, na Ação Criminal em que foi relator o eminente juiz Azevedo Júnior, publicado na Revista dos Tribunais nº 304, pág. 498, quando decidiu que “no exercício do curandeirismo, em qualquer de suas modalidades, pressupõe-se a existência do dolo, isto é, desejar o agente o resultado ou assumir o risco de produzi-lo, O que não pode acontecer com o indivíduo mediunizado. Este, no estado de ‘transe’, acha-e inconsciente e assim não poderá ser responsabilizado por ações praticadas à sua revelia, pelos espíritos que nele se incorporam”.

Entendemos ser esta uma posição correta, mas a insistência de muitos julgadores em condenar ações sérias, como as de João de Deus, e as que foram praticadas por Zé Arigó, Edson Queiroz, Chico Xavier e outros benfeitores, não passa de pura hipocrisia por parte de julgadores, uma vez que se sabe que estas pessoas já curaram, curam e ainda poderão curar até magistrados, os quais, por faltar-lhes coragem, não querem reconhecer a força espiritual desses mediuns, que só é benéfica, e apegam-se exageradamente à lei, sem verificar os benefícios que os espíritas trazem para todos e, principalmente, sem atentar que as curas são realizadas não pelo médium, mas pelas entidades iluminadas que neles se incorporam. Já é tempo de colocarmos as coisas no seu devido lugar, não considerando charlatães ou curandeiros (no sentido que a lei concebe) pessoas como João de Deus, que, pelo poder mediúnico que lhe é inerente, consegue convencer, com paciência e bondade, todos aqueles que o buscam, e às vezes maliciosamente, tentando obstruir seu trabalho. Certa ocasião, ele quase foi preso por “exercício ilegal da medicina” e, no entanto, vários médicos pediram para ser curados por ele, que, ao final, saiu daquele país com uma condecoração do Governo. Viajei com ele para aquele país, onde constatei pessoalmente o poder de sua mediunidade.

É preciso entender que as curas através de entidades, a nosso ver, não são crime, pois a lei não estabelece isto, limitando-se a dizer que é curandeirismo “prescrever, ministrar ou aplicar qualquer substância; usar gestos, palavras ou qualquer outro meio e fazer diagnósticos”. No entanto, a jurisprudência, insensível talvez, pune o “aparelho”, esquecendo-se de que o médium não pode ser penalizado por algo que ele não fez (quem faz, na realidade, é a entidade, e não o médium). É preciso que haja uma nova mentalidade na Justiça, no sentido de discernir quem é charlatão, quem é curandeiro e quem cura através da mediunidade, estando estes últimos inteiramente à margem de qualquer ilícito penal e, por conseguinte, livres de qualquer punição, nos termos da lei. Ministros das Cortes de Brasília não são raros na “Casa de D. Inácio”, em Abadiânia, como eu próprio constatei.

Carlos Imbassahy, advogado, jornalista, parapsicólogo e escritor espírita brasileiro, em A Mediunidade e a Lei, trata exaustivamente dessa matéria. Falando de um processo movido contra o médium Inácio Bittencourt, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, refere-se a sua absolvição com base no voto do ministro Viveiros de Castro, como segundo revisor, em Sessão do dia 23 de outubro de 1923. Entre outras coisas, assim se expressa: “Não posso chamar de exercício da medicina a cura por meios naturais. Não se diz que o Apelante receita. Ele próprio diz que  invoca os espíritos e que estes receitam. Trata-se, portanto, de prática de um culto. Acho que o procedimento do Apelante não é o exercício da medicina, mas a manifestação de uma crença religiosa, digna de acatamento como qualquer outra crença religiosa.” E, acrescenta: “Ora, nunca vi ninguém pretender ainda submeter a processo autoridades eclesiásticas que operam milagres. Curar por meio do Espiritismo é acreditar na intervenção sobrenatural. Por essas razões, deve considerar-se o fato, não como exercício da medicina, mas como manifestação de crença.”

Luis Jiménez de Asúa, jurista e político espanhol, um dos mais notáveis jurisconsultos de sua época, que veio viver seu exílio na Argentina, passou a defender enfaticamente o transtorno mental transitório como causa eximente da responsabilidade penal. Em sua obra El Criminalista, ele apresenta sua tese com grande competência, influenciando as decisões dos tribunais argentinos.

Calcado em jurisprudência espanhola, Asúa apresenta naquela obra os requisitos básicos a se considerar na aferição da causa excludente de crime: “Primeiro, uma perturbação mental de causa imediata, evidenciável, passageira que termina pela cura, diferenciando da perturbação permanente; segundo, uma base patológica provada; terceiro, que produza anulação do livre arbítrio e geralmente inconsciência, não bastando a mera ofuscação” (El Criminalista, vol. 2, Editora La Ley, Buenos Aires, 1942, pág. 265).

Adiante, comentando sobre o estado de inconsciência momentânea e a privação do livre arbítrio, o grande jurista acaba por chegar à conclusão de que não constitui crime a ação humana praticada com a privação, mesmo que momentânea, do livre arbítrio, devido ao estado de inconsciência transitória, que é o caso do médium incorporado.

Também eu comungo dessa tese.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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