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OPINIÃO

Cidadão: hardware político

A grave crise política que marca o segundo mandato de Dilma Roussef é caracterizada por uma intensa polarização. Os meios de comunicação tradicionais e as redes sociais exibem, em maior ou menor grau, opiniões radicais e apaixonadas. Uma luta por poder é travada e o povo é usado como massa de manobra para endossar discursos nem sempre dotados de substância. Encontram-se muitas opiniões e poucas análises.
Informação e contrainformação são instrumentos empregados pelos dois (ou serão mais?) lados nessa disputa. O vale-tudo político-midiático produz e intensifica alguns mitos. Um deles é o caráter negativo dos programas sociais.
Nos protestos e arengas anti-governo, ouvem-se alguns motes: “programas sociais são instrumentos de compra de voto”; “o dinheiro dos impostos está sendo utilizado para sustentar vagabundo e preguiçoso que não gosta de trabalhar”; “o bolsa-família tem fim exclusivamente eleitoreiro”. Evidentemente, os programas sociais não são isentos de crítica mas o problema não reside na sua existência, e sim na execução. Além disso, deve-se lembrar que a Constituição Federal apresenta explicitamente os quatro objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3.º): “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Todo cuidado é pouco para não se cair na armadilha da verborragia acéfala: “auxílio-desemprego nos EUA ou no Reino Unido é evidência do welfare state; na França, do état providence; na América Latina é bolivarismo e comunismo”.
A assistência social não é apenas um assunto de governo. Trata-se, antes, de questão de Estado... por mais que quem esteja à frente da máquina pública e no comando do orçamento possa transformar o assistencialismo em capital eleitoral, principalmente quando os órgãos fiscalizadores são débeis, incompetentes ou coniventes.
Esse não é um fenômeno novo, nem uma criação do Partido dos Trabalhadores. Aliás, na disputa pela presidência de 2014, PT e PSDB disputaram a paternidade do Bolsa Família. Segundo os tucanos, o Bolsa Família nada mais é do que a unificação de projetos instituídos por Fernando Henrique Cardoso: Bolsa Escola (lei 10.219/2001); Bolsa Alimentação (medida provisória 2.206-1/2001) e Auxílio Gás (decreto 4.102/2002). Petistas indignados retrucaram com fúria... a coordenadora-geral dos benefícios do Bolsa Família no Ministério do Desenvolvimento Social Combate à Fome, Luciana de Oliveira, chegou a publicar uma carta aberta ao candidato Aécio Neves para esclarecer que o DNA do programa era petista.
Outro aspecto relevante na turbulência atual é o modo como o brasileiro encara a governança. Embora um dos fundamentos da Constituição seja o pluralismo político, o cidadão tende a esquecer o partido e concentrar sua atenção nas pessoas. Normalmente, vota-se no indivíduo sem dar tanta importância ao partido. Um mesmo eleitor escolhe presidente do PT, governador do PSDB, senador do DEM, deputado federal do PR e deputado estadual do PC do B. Tem-se, portanto, um comportamento eleitoral esquizofrênico. O cidadão exige moral mas participa ativamente da pornografia política.
A sociedade atual enfrenta uma ampla crise de autoridade. Famílias, escolas, instituições políticas têm cada vez mais dificuldade de estabelecer autoridade. Por outro lado, o indivíduo exibe um comportamento eleitoral imaturo, quiçá infantil. O povo ainda procura um líder, uma figura capaz de guiá-lo e conduzi-lo ao paraíso (messias, rei-filósofo, timoneiro, caudilho, caçador de marajás, sociólogo, sindicalista, mulher de coragem, delegado, pastor, juiz). Mira-se excessivamente o Executivo e se ignora o Legislativo. No entanto, este exerce a principal função: criar as leis. E mais, o parlamento fiscaliza a atuação do Chefe de Governo, autoriza ou referenda atos executivos e tem poder para julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade. Lamentavelmente, muitos consideram a escolha de deputados e senadores um assunto secundário ou uma brincadeira; outros, hipnotizados, acreditam que o voto de protesto em caricaturas bizarras é uma manifestação de civismo e um ato de rebeldia contra o sistema. A definição dos membros do Congresso Nacional é a engrenagem mais importante no funcionamento da máquina governamental, mas o comportamento eleitoral nem sempre revela maturidade.
Se o povo está indignado com a atual situação do país e clama por mudanças, como alguém pode afirmar que o cidadão brasileiro não atingiu a maturidade política necessária ao funcionamento de uma democracia? O inconformismo é parcialmente espontâneo e parcialmente induzido. A população está muito mais próxima dos agentes políticos municipais e estaduais, mas raramente movimentos sociais vão às ruas gritar “fora governador”, “fora prefeito” ou “fora vereadores”. A mídia é uma peça fundamental na disputa pelo poder político e os holofotes estão voltados para as questões nacionais. Ética, moral e civismo permanecem em estado de hibernação e são despertados por informações transmitidas na cadência de um mantra. Quem determina o conteúdo das manchetes, dos textos, ou controla a pauta que ocupará os preciosos minutos e segundos dos noticiários televisivos que informam a maior parte da população pode conduzir o sentimento de indignação para a direção que julgar mais conveniente. Na era da informação, o voto é um hardware. Quem controla o software?

(Paulo Henrique Faria Nunes, bacharel em Direito, mestre em Geografia e doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Université de Liège (Bélgica); diretor da Associação de Professores da PUC-Goiás (Apuc); professor e pesquisador na PUC Goiás e na Universidade Salgado de Oliveira)

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