Uma sociedade unida pelo cinismo
Redação DM
Publicado em 5 de abril de 2016 às 03:25 | Atualizado há 9 anos
O atual momento de efervescência social, proporcionada pelo agravamento das intrigas políticas, ainda que tantos malefícios vem causando ao País, é inegável que, por outro lado, sob o aspecto psicológico, sociológico, antropológico, tem dado grande contribuição para o conhecimento sem disfarce da mentalidade social brasileira. É claro que a atmosfera político-social na qual estamos envoltos tem escancarado que a nossa sociedade é formada por castas e existe um apartheid estabelecido de maneira informal, porém intransponível. Isso, claro, não é nenhuma novidade. Como também não é novidade que o elemento ou força que caracteriza e possibilita a convivência social brasileira chama-se cinismo.
A novidade é que essas assertivas estão se tornando mais explícitas, mais assumidas. É dizer: os cínicos perderam a modéstia. O cinismo tem-se convertido não apenas em um estilo, mas em uma norma necessária de convivência e relação social recíproca, característica do estabelecido pela sociedade brasileira. Aquilo que o dramaturgo Nelson Rodrigues vaticinou para o casamento revela-se, agora, como essencial para aceitação e sobrevivência como ser gregário, ajustado ao modo de ser da sociedade. Para Nelson Rodrigues, só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata. Parafraseando-o, eu digo que é preciso muito cinismo para suportar a sociedade atual, com tudo o que há de deplorável e angustiante nela, principalmente com os seus representantes políticos que ela escolhe. É preciso um pacto tácito de cinismo capaz de assegurar-lhe a sobrevivência e a suportabilidade de convivência. A crise política pela qual o Brasil atravessa é, em grande medida, consequência de uma crise mais perversa, que nos causa maiores danos: a crise de valores éticos recrudescida por um preconceito atávico e de um individualismo que dilacera qualquer esperança de construirmos um País decente. É impossível imaginar a criação de uma nação decente se somos tão carentes de pessoas virtuosas. A escassez de virtude contribui para que toda uma sociedade seja lançada em um fosso dantesco, onde todos agonizam, mas que precisam pautar-se pelo “senso-comum” da inescrupulosidade como condição de assegurarem a própria sobrevivência e, assim, ostentarem uma identidade social.
Possivelmente, no Brasil nunca se falou tanto em “valores éticos”. Com isso, é possível perceber, com maior nitidez, o quanto a sociedade brasileira é cínica. E quanto mais alta for a classe social maior o cinismo. Isso fica mais evidente quando vemos as imagens dos protestos ou o comportamento dos políticos, manifestando que são contra a corrupção. Percebe-se que quanto maior for o pilantra, quanto mais ele for moralmente falido, mais ele vitupera com um discurso moralista. Em Goiânia (GO) uma imagem que chamou a atenção pela sua bizarrice foi a de um padre desonesto e malandro sair nas manifestações ostentando cartazes com frases contra a corrupção. Ele, todavia, ganha as páginas dos jornais e os noticiários da televisão como sendo um grande corrupto, considerado um “funcionário fantasma”, aquele que ganha salário, mas que ninguém o conhece no local de trabalho. Em razão disso, responde a processos na justiça onde se pleiteia a restituição aos cofres públicos do dinheiro que ele recebeu indevidamente, durante mais de uma década. Considerando que esse padre prega sermão, fala dos valores humanos, da bondade, da caridade, de honestidade como virtudes para se alcançar o Reino de Deus a milhares de pessoas, conclui-se que ele represente o paradigma do cinismo, influenciando uma grande legião de pessoas a assimilarem como valores sociais o instinto da malandragem, do cinismo, como estilo de vida socialmente aceito.
Reiteradas vezes eu lancei um desafio público: mostre-me, em Goiás, um único milionário que não possua a sua fortuna associada, direta ou indiretamente, ao dinheiro público, com alguma nódoa de ilicitude. Nunca apareceu ninguém.
Durante as manifestações, cinicamente chamadas de “contra a corrupção”, não foi difícil perceber que os seus principais incentivadores, dentre políticos e empresários, são os grandes corruptos e saqueadores do dinheiro público ou que sonegam impostos, exploram seus empregados, não recolhem os encargos sociais, ainda que os descontem dos salários. Há um exemplo dessa espécie que, nas manifestações, ostentava cartazes com dizeres como “Chega de Corrupção”! Esse “indignado” era diretor de uma empresa estatal responsável pela construção de rodovias em Goiás e, dias depois, foi preso sob a acusação de estar envolvido em um milionário esquema de desvio de dinheiro público. Quem não viu, também nas manifestações de magistrados e representantes do Ministério Público, principalmente nas redes sociais, dizendo-se contra a corrupção ou contra as políticas sociais como o Bolsa Família, por ser, segundo eles, para sustentar vagabundos e estimular pobre a ter filhos? Eles, entretanto, não demonstraram a menor ruborização em se beneficiarem de penduricalhos que a sociedade repudia como “auxílio moradia”, dentre outros, sem contar os escabrosos casos de práticas condenáveis envolvendo os “agentes da justiça”, reiteradamente veiculados na imprensa. Nessas manifestações, quantos autodenominados “empresários”, cinicamente, teatralizaram que são contra a corrupção, mas que constroem suas fortunas adotando práticas criminosas? Veja-se, por exemplo, o caso dos empreiteiros, empresas de telefonia, postos de combustíveis, supermercados, etc. Um criminoso pobre recebe o estigma de “bandido”, “ladrão”, “marginal”, etc. Um criminoso que se esconde detrás das fachadas de suas empresas, ou políticos que roubam imensuravelmente mais, não recebem os mesmos estereótipos nem são submetidos ao anátema social. Mesmo quando são presos, o que só muito raramente ocorre, a própria imprensa os chama de “empresário”, “diretor”, “presidente”, etc.
Quando ocorreu o impedimento do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, a maioria dos deputados federais, ao anunciarem os seus votos, diziam que votavam “pela ética, por um país melhor, pelos seus filhos”. Pouco tempo depois, praticamente todos eles foram flagrados em esquemas e corrupção que, em termos de proporcionalidade, superavam demasiadamente os crimes atribuídos ao presidente defenestrado. Atualmente, a Comissão Especial na Câmara dos Deputados, responsável pelo julgamento da presidente da República – frise-se: contra a qual não há nenhuma suspeita de corrupção – é composta por uma maioria de deputados inescrupulosos, processados criminalmente por uma infinidade de crimes, inclusive o presidente do Parlamento, inegavelmente o maior representante do gangsterismo encastelado nas instituições públicas. Nesse caro, particularmente, em um dos poderes da República.
Na Grécia antiga os cínicos eram pessoas que desprezavam as convenções sociais, esmolavam pelas ruas e costumavam discursar aos passantes, tentando dissuadi-los dos valores morais vigentes na sociedade. O mais expressivo representante dessa espécie de corrente filosófica foi Diógenes (séc. IV, a. C.). Eram pessoas sujas, barbudas, repugnantes, unhas imundas, que levavam uma vida errante. Caracterizavam-se pela rejeição a tudo o que a sociedade considerava aceitável ou certo. Os cínicos seriam, portanto, o que hoje conhecemos como andarilhos e mendigos. Mais contemporaneamente, o filósofo Peter Slotedijk, em “Crítica à razão cínica”, apresenta uma análise da sociedade contemporânea, caracterizada pelo cinismo difuso, por desilusão moral e desavença política. Para ele, o cinismo atual é o reflexo de um individualismo extremo que o cenário mundial desenhou para todos. Em sociedades como a do Brasil, com marcante cultura de desprezo aos valores éticos que poderiam fomentar uma inter-relação social salutar, com respeito e valorização do próximo, o individualismo adquire relevo, culminando com o quase absoluto desprezo pelo outro, visto apenas como objeto de consumo rápido e descartável. O cinismo, que permeia as relações sociais, é consequência de um pragmatismo que impõe às pessoas uma convivência calcada em meros interesses. As pessoas, ao romperem com o conceito de valores humanos, onde deveria imperar o respeito e o reconhecimento à dignidade, em uma ética social, transformam as relações sociais em oportunidades de tirar proveito em tudo e de todos, onde o ser humano não passa de um objeto de consumo a ser explorado.
Surge, então, essa indiferença ao semelhante onde todas as ações humanas são baseadas na emulação, na dissimulação. Consequência de uma degradação moral generalizada. A corrupção que nos assola não decorre de ações ou comportamentos de pessoas isoladas. Os políticos, os burocratas e tecnocratas, são apenas a representação instrumentalizada, institucionalmente, dessa sociedade. O cinismo é o sentimento que a unifica e a identifica. Como no caso do casamento, citado por Nelson Rodrigues, para que essa sociedade se tolere é necessário uma boa dose de cinismo. E assim o fazem.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – [email protected])