Opinião

Bumbum do brasileiro na ideologia branca

Redação

Publicado em 24 de junho de 2015 às 02:17 | Atualizado há 10 anos

 

O sexo no Brasil, pouco importando suas nobres funções, distinguindo homem e mulher, espécies animais, órgãos reprodutores femininos e masculinos vegetais e, justificando métodos que oferecem outros tipos de vida e relacionamentos, esquisitos, continua um assunto emblemático, mais vezes pornográfico, obsceno, proibido. Falar das tais partes íntimas ou vergonhosas, especialmente da mulher, é sempre perigoso. Se entra a África, sedutora, então… notem que o bumbum, substantivo masculino, é o substantivo feminino da bunda do brasileiro, de origem africana, através da língua quimbundo e talvez quicongo. Nele se misturaram as nádegas, o traseiro, o sesso, os posteriores e o tal de ânus dos grã-finos e civilizados, de origem portuguesa ou não, para não dizer o “cu” que, de tão fétido e indecente, foi proibido de ser propagado por ofender a moral e os bons costumes; vendo-se que, de tão inconveniente, foi escondido e apelidado pelo inesquecível escritor Carmo Bernardes, de “lugar onde não chove”. De todo modo, se não fosse o forte processo de aculturação do branco com o negro, no Brasil, na secular mistura dessas duas culturas, nos deixando a “bunda” saliente e o bumbum dengoso, como influência africana, até no carinho com as crianças, seríamos um povo desconhecido, dotado da estranha característica das gentes “sem bunda”, já que só poderíamos ter à nossa disposição, as nádegas inofensivas e os trazeiros respeitosos, exigidos pela decência ética e religiosa dos moralistas de plantão, se assim puder dizer.

Frise-se que se não fosse a bunda, de origem africana, de onde, por certo, nos vem quilombo, quibebe, candango, cacimba e outros milhares de vocábulos procedentes da África, no português do Brasil, não teríamos o bumbum sensual que temos, há muito tempo modelado como tipo exportação; disputadíssimo como mercadoria na indústria do sexo mundo a fora; ora objeto de inédito e concorrido concurso de miss bumbum no Brasil, com todo marketing e vulgaridade exigidos pelos lucros do capitalismo neoliberal; não teríamos a expressão chula, “panos-de-bunda” (Pega teus panos-de-bunda e vai-te embora!), consoante definiria interessante Dicionário Banto do Brasil (1993-95), do conceituado Nei Lopes; não se bateria com o calcanhar na bunda, ao dançar uma polca; não se teria bunda-de-tanajura, aquela formiguinha ou saúva, de nádegas salientes por serem maiores do que o corpo, principalmente quando vai desovar; a bunda de mulata, amarelinha, trepadeira, ornamental, a ser explicada pela semântica, ainda muito perseguida.

Não se teria notícia da língua dos bundos, justificando existência do segundo maior grupo etnolinguístico de angola, de onde vieram principalmente os povos bantos que mais se dispersaram no Brasil; a bunda-de-mucama, espécie de bredo ou caruru, de folha espessa e macia; a bundona, a bundaça, a bundacanasca, o bundá, deixando trouxa e embrulho; o bunda-mole, que se requebra ao caminhar; o bundão, que não está com nada, não quer nada, sobretudo no Nordeste; o bunda-suja ou indivíduo medroso nordestino e Paulista; a bundeira ou moça, virgem, ou não, que permite cópula anal; o bundeiro, que procura pederastas para satisfação de seus instintos sexuais; a bundeta, das pessoas de nádegas volumosas, nem vagabundear existiria, facilmente constatáveis nos dicionários especializados, com ênfase de palavrão e termos afins, como o de Mário Souto Maior (1980).

Apesar da saliência da “bunda” e do contínuo e acentuado fenotípico do negro no Brasil, nos últimos tempos assumindo identidade “negra” e dando maior valor à sua história e sua cor, no dizer do sociólogo americano Ellis Cashmore (Dicionário de relações étnicas e raciais-2000), por aqui ninguém é capaz de dizer onde termina o “branco” e onde começa o “negro”.  Por quê? A ideologia de dominação branca, com realce neoliberal, onde reside o racismo disfarçado, exigindo “branqueamento” até de bumbum, não seria a responsável? Num País de racismo inclusive meloso, para não dizer hipócrita, é fácil fingir que o assunto é complexo, mesmo estando criminalizado e definido como crime inafiançável e imprescritível pela Constituição Federal.

Vejo que no Brasil ainda há muitos equívocos, separando “fazer o bem” e ganhar dinheiro, vivendo-se mais da maquiagem e o disfarce, no próprio empreendedorismo nacional, onde suas ricas atividades não precisam ser esbranquiçadas para serem dignas e virtuosas, nelas podendo e devendo participar negros, brancos, pardos e todas as cores. Desse modo, por que o negro e seus impressionantes valores culturais, para que possam alcançar status proativo e decente na sociedade, precisam agir como branco, seguir padrão da beleza branca, como num concurso de miss bumbum, no qual, a bem dizer, além da ausência da mulher negra, sutilmente barrada pela discriminação racial e econômica, a execução do ato seguiu obrigatoriamente a performance comercial, consumista, da ideologia neoliberal, criadora e mantenedora das mais torpes escravidões de hoje em dia, com destaque de mulheres?  É curioso! Sendo por isso, certamente, que temos no Brasil uma velha lenda, para não dizer um ditado, segundo o qual “o dinheiro embranquece”, fato que forçaria um “branquecimento” gradual, “desejável”, sem traumas, pelo próprio negro, deixando a impressão de ser uma condição “sine qua non”, em concurso de miss bumbum ou não, como se o segmento negro, não estivesse atento, se reciclando no Brasil e de certo tempo, se enaltecendo de uma “herança negra”, de uma ou várias culturas negras, belezas ou estéticas negras, religiões negras ou afro-brasileiras, sorrisos negros, histórias do negro e não sobre ele, sem aspas e imposição de quaisquer ideologias, não necessitando, por conseguinte, esbranquiçar até a alma, como acontece no Brasil, no algarve e predomina noutras diásporas neoliberais.

 

(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, UBEGO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – [email protected])

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