Opinião

Relatos cotidianos em crônicas de ternuras e relembranças do chão goiano

Diário da Manhã

Publicado em 28 de setembro de 2016 às 02:10 | Atualizado há 4 meses

A crônica inicialmente vista como gênero menor, frívola e passageira, ganhou, ao longo do tempo uma outra dimensão nos estudos literários. Leve e instigante, viva e atuante, passou a ser reconhecida como gênero importante, haja vista fazer um flash do momento e instaurar o dado no foco do acontecimento e, a partir daí, constituir-se memória de um lugar e de uma época, na emoção do acontecido.

A crônica está centrada no momento e na consciência fragmentária e por definição, não pretende captar a totalidade dos fatos. De sua inicial frivolidade, dedicou-se ao registro sério e muitas vezes irônico dos fatos.

Com o passar do tempo, a crônica consagrou-se como gênero popular por excelência, na fronteira entre o conto, o caso, o comentário que serve à história, e a poesia ou prosa poética, plena de lirismo e de sensibilidade.

O gênero destaca-se como prosa intimista, confessional, memorialista, ora lírica ora denunciadora de mazelas, visão personalíssima dos fatos, mostrando estados de espírito, escrita de circunstância e do cotidiano, despretenciosa, insinuante e reveladora.

Foi difícil a sua aceitação como fonte de conhecimento histórico, sociológico, folclórico e como investigação viva, do momento, sobre os fatos angustiantes ou relevantes que determinam uma época. No Brasil, a crônica firmou-se nos nomes de Coelho Neto, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Rubem Braga, Fernando Sabino, e também, nas escritoras como Adalgisa Nery, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Lazinha Luiz Carlos, Eneida de Morais e Marisa Raja Gabaglia.

Em Goiás, destacaram-se no gênero crônica, os escritores Antonio Juruena di Guimarães, Genezy de Castro e Silva, Maria Ferreira de Azevedo Perillo, Altair Camargo de Passos, Floracy Artiaga Mendes, Ary Demóstenes de Almeida, Zecchi Abrahão, Cora Coralina, Graciema Machado de Freitas, Nair Perillo, José Mendonça Teles, Belkiss Spenciére Carneiro de Mendonça, Gil Perini, Maria do Rosário Cassimiro, Bariane Ortêncio, Brasigóis Felício, Mário de Moraes, Jean Pierre Conrad, Altamiro Pacheco, Carmo Bernardes, Hamilton Carneiro, e muitos outros.

Em Goiás, as crônicas nasceram sob a égide feminina nos Jornais A Rosa e O lar, na velha capital, Cidade de Goiás.

Foi mesmo a partir de A Rosa que iniciou sua circulação em l907 que nomes femininos começaram a aparecer na imprensa e que mulheres cronistas e jornalistas passaram a atuar com trabalhos que denotam, pela linguagem e escolha vocabular certo romantismo tratando de assuntos ligados às emoções pessoais, sentimentos e perquirições existenciais, além de nostálgicas descrições do bucólico ambiente goiano, revelando as preocupações e necessidades culturais e sociais da época.

Observaremos como tal fato ocorria pelo cotejamento da produção de Illydia Maria Perillo Caiado, publicada no Jornal A Rosa em sua edição de 24 de setembro de 1908, e pelo que foi possível encontrar em nosso levantamento em arquivos públicos e particulares, uma das primeiras manifestações femininas no gênero por meio da imprensa de Goiás, embora alguns estudos e biografias de autoria de Josefina Pinheiro e Ondina de Bastos Albernaz apontem o nome de Jacinta Luiza do Couto Brandão Peixoto (mãe da poeta Cora Coralina) como autora de algumas crônicas em jornais de Vila Boa comentando sobre a Monarquia brasileira.

No ano de 1926, entrou em circulação o jornal O Lar. Diferentemente de A Rosa que teve por gerente um homem, O Lar foi formado completamente por senhoras e mocinhas que conseguiram impor o talento através de uma postura elegante e sutil, como era condizente ainda com os ditames severos da sociedade patriarcal da República Velha.

Sob os cuidados de Genezy de Castro e Silva, Oscarlina Alves Pinto, Floracy Artiaga, Laila de Amorim e Altair Camargo, O Lar teve em Maria Ferreira de Azevedo Perillo uma de suas principais colaboradoras.

Nas primeiras décadas do século XX, enquanto nos grandes centros fervilhavam as mais calorosas discussões sobre os conflitantes problemas nacionais e globais como a Primeira Guerra Mundial, e a literatura postulava um debate sobre esses conflitos nas obras, ainda se tematizava na literatura goiana o papel de mãe, esposa, sacrifício e devotamento à causa da família.

As cronistas foram pouco a pouco surgindo, algumas escondidas sob pseudônimo, mas todas tratando de assuntos de ordem social, revelando perquirições, retratando sonhos e outras temáticas dispersas em jornais amarelecidos do Arquivo Histórico Estadual.

Bento Fleury 8

Não apresentavam um aprofundamento do assunto, fato que,  convenhamos,  era compatível com a época e o nível e desenvolvimento do gênero no Brasil porque a crônica ainda dava os primeiros passos para a sua consolidação nesse tempo por meio da produção do conhecido João do Rio, isto na imprensa do Rio de Janeiro.

Depois, em Goiânia, a crônica passou a ser difundida nos jornais e na Revista Oeste. A pioneira foi Nita Fleury em sua colona “Do meu cantinho”, no Jornal O Popular, a partir de 1938.

Nos anos de 1940 na Revista Oeste, o escritor Frederico de Medeiros escreveu uma série de crônicas sobre a região do setentrião goiano. Eram trabalhos literários baseados em suas viagens pelo interior e pelas impressões que o mesmo possuía da região em que visitava e estudava.

Assim, na publicação de algumas, é possível encontrar descrições históricas e geográficas sobre a região que são dignas de nota, em especial na intitulada “Rosinha, a bela cunha apinagé”, sobre o isolamento verde, no seio das matas, nas margens dos rios, nas vilas ribeirinhas, nas matas verdejantes, na falta dos caminhos, nas enchentes, na falta de recursos e no abandono do povo: “Verdadeiro reduto geográfico do interior do país isolado pela imensidade das distâncias, onde o progresso só tem chegado em pequenas dosagens, cavalgando que vai em lombo de alimárias e no dorso móvel das águas, em luta constante com o impaludismo e a difícil condição mesológica, constituirão sempre um problema nacional o povoamento e consequente desenvolvimento daquela longínqua região. Muito de primitivo ali ainda se encontra. Se todo aquele mundo verde, castigado de sol, ainda possui a sua virgindade violentada, aqui e acolá por uns bosquejos de civilização, é tão somente pelo capricho dos dadivosos rios em carrearem para as suas margens pequenos núcleos populacionais tipicamente ribeirinhos, aos quais teimam em prodigalizar as condições mínimas indispensáveis à vida de uma comunidade, por mais modesta; meio de comunicação, as vazantes propícias à cultura, sem necessidade do amanho da terra e – principalmente – no que respeita ao Araguaia – o produto de sua farta e variada fauna ictiológica”.

Outro cronista da Revista Oeste nos anos de 1940 em Goiânia, a se preocupar com o meio ambiente e com o Cerrado foi Iron da Rocha Lima, vilaboense e ambientalista, numa época em que não se falava a respeito. Foi ele Delegado do Estado de Goiás no Primeiro Congresso de Botânica, realizado no Rio de Janeiro em 1940.

Em sua crônica intitulada “O homem, este terrível fazedor de desertos”, veiculada na Revista Oeste em 1942, enfatiza sobre a destruição em massa das árvores do Cerrado, já naquele tempo, há mais de setenta anos. Narra a destruição da mata ciliar do Rio Meia Ponte no começo de Goiânia, o cenário de destruição, a lenha, a antiga floresta derrubada e queimada na beira do rio, o barranco nu, a tristeza do lugar, outrora coberto de densa mata secular. É uma crônica de denúncia. “Abrem-se avenidas, chaminés apontam para os céus. Onde, ontem, lobos trotavam, ergue-se um teatro cintilante de luz. Nos buritizais, em vez do matraquear dos papagaios, ouvem-se risadas de colegiais em recreio. E a cidade-milagre vai brotando na planície como num conto de fadas. Á medida que Goiânia vai crescendo, os meus vetustos jatobás vão desaparecendo, abatidos pelo machado dendroclasta. Já não ouço o pio da jaó e o guariba negro emudeceu. O água só está morto… Há dias quis rever umas belas amizades ali pelos lados do leprosário, uns gigantes da floresta cheios de orquídeas roxas e onde joões congos alegres construíram a sua cidade barulhenta de longos ninhos de capim. Uma impressão dolorosa dominou-me ao percorrer aquelas margens do Meia Ponte, que corria entre barrancos desnudos. Lenha e cinza era o que restava dos meus amigos centenários. Prossegui. Adiante pilhas e pilhas de lenha e a terra cinzenta, varrida pelos ventos rodopiantes escaldava ao sol. Há dois anos ainda existia aqui uns seicentos alqueires de flroesta virge – a mata do algodão”.

A professora Floraci Artiaga Mendes foi uma das mais competentes mestras do magistério goiano. Cronista, estudiosa, pesquisadora, deixou obra espalhada por jornais e revistas, notadamente a Revista Oeste e Revista de Educação do Estado de Goiás, na época, dirigida pela Dra. Amália Hermano.

Amante da natureza e protetora das árvores, em seus textos, defendia o verde e o Cerrado. Na Revista Oeste, de 1944, publicou a crônica “Volta à natureza” em que destaca a visão do cerrado ao vivo, as lembranças cívicas da natureza, a tranquilidade dos chapadões, a sensação de paz com a natureza, os sonhos com um Goiás dúbio, ainda sertão e se desenvolvendo: “Aqui estou, neste verde cenário de pelúcia vegetal, orlado de buritizais farfalhantes, sob um puro céu de campo, bordado de alvas nuvens tranquilas. Refugio-me no aconchego da natureza, ao me furtar às emoções lembro de seu valor. “Dos vossos chapadões descerá um dia a onda civilizadora”, disse alguém, algures, no coração do Brasil, o pioneiro dos seus destinos, nesse rincão de Goiaz onde eu passo a sonhar. E ouço os tratores, as usinas e as seriemas e o fragor das cachoeiras e a orquestra do malho, a sinfonia dos pássaros desses cerrados bonitos que vejo daqui, desse cadinho do sertão, no interior da pátria”

Como cronista pioneira de Goiânia, destaca-se o nome de Genezy de Castro e Silva. Iniciando ainda na Cidade de Goiás a sua atividade de jornalista e cronista, destacou-se nos primórdios de Goiânia como cronista dos jornais locais e também da Revista Oeste, antes mencionada.

Nessa revista, encontramos colaborações da autora que demonstram a evolução desse gênero literário na nova capital pela variedade temática, pela linguagem, pelo posicionamento crítico e pelas considerações filosóficas.

Vejamos a crônica “E os sofrimentos serão aliviados”, de autoria de Genezy de Castro e Silva, que foi publicada na Revista Oeste em seu número 3, que circulou em Goiânia em abril de 1943: “No dia em que inauguraram, em São Paulo, a nova penitenciária – a das mulheres – houve certamente aleluia no ar e, na terra, alegria sã para os que se apiedaram dos sofrimentos alheios. Foi de certo um dia claro e ensolarado, como calma e confortante é a piedade dos corações. Não sei de instituição mais útil e sociável; não sei de ideia que melhor nos relembre, a todos, o dever sagrado de olhar pelos mais infelizes, pelos seres que, privados de assistência na infância, de amparo na mocidade, tiveram os dias de maturidade ensombrados pelo espesso véu do crime. Do crime, na maior parte, fruto da ignorância e de ímpetos inexplicáveis, de faltas acoimadas pelo subconsciente turbado pelas taras e vícios. Guiadas pelas irmãs religiosas especializadas no assunto, peritas em localizar o ponto sensível daquelas consciências aparentemente endurecidas, terão ainda essas mulheres, na vida, momentos de certa felicidade, da felicidade que, mesmo fragmentada, é como o raio de sol que invade aposentos, iluminando cada recanto como se inteiro ali estivesse”.

O tema da crônica resvala para o social, a autora discute o grave problema dos presídios mistos e a necessidade de um trabalho assistencial para minorar as consequências psicológicas e sociais em consequência dos crimes cometidos. Utiliza o Cerrado para identificar Goiás, onde sob novas sombras, não aquelas rarefeitas dos antigos campos, nascerão novas oportunidades.

Interessante comparativo feito pela cronista da época. A cronista reflete filosoficamente sobre a natureza dos crimes, “fruto da ignorância e dos ímpetos inexplicáveis” e vai tecendo com inteligência, senso crítico, visão social, linguagem escorreita e clara, quase objetiva, seus comentários sobre um assunto polêmico para a sua época, a criação das penitenciárias, em São Paulo, destinadas exclusivamente às mulheres.

Com isso, percebemos que as cronistas, notadamente Genezy de Castro, estavam utilizando a palavra e a imprensa como veículo para análise de assuntos polêmicos e manifestação sobre ideias conflitantes, ajudando a formar o pensamento goiano, não apenas usando esse espaço para elucubrações, devaneios e sonhos que caracterizavam o gênero ainda na Cidade de Goiás.

Percebemos em crônicas de Genezy de Castro que o gênero não era apenas registro sentimental, mas, sobretudo, o comentário abalizado e coerente dos acontecimentos de um meio e de um tempo, registro de uma sociedade e seus modus vivendi. A cronista era a comunicadora do cotidiano, integrando o leitor em suas inferências críticas.

Nair Perillo Richtertambém natural da Cidade de Goiás, foi uma das primeiras cronistas do jornal O Popular, a partir de sua fundação em 1938, a convite de seu fundador, jornalista Jaime Câmara. Nesse jornal, Nair Perillo tinha uma coluna com o título de “No mundo das letras” com crônicas  que revelavam seu estilo sentimental.

Muito cedo Nair Perillo iniciou sua colaboração nos jornais da Cidade de Goiás, como A Razão, fundado ainda na década de 20, órgão dirigido por Jaime Câmara e Joaquim de Carvalho Ferreira.

Foi colaboradora do jornal Cidade de Goiás, fundado no final dos anos 20  pelos jornalistas  Goyaz do Couto e Garibaldi Rizzo. Com a fundação da Associação Goiana de Imprensa em  l0 de setembro de l934 por Albatênio Caiado de Godoy, foi escolhida como membro fundador da entidade em sua histórica fundação.

Casando-se com o engenheiro técnico Zdnek Richter, de nacionalidade tcheca, transferiu residência para o Estado do Pará, onde continuou prestando sua colaboração na imprensa através do jornal Província do Pará, editado em Belém, A Tarde, no Estado do Maranhão, e no Jornal do Comércio, de Manaus, mostrando ao norte do país um pouco do pensamento da mulher goiana, distanciando-se assim da imprensa de Goiás até a década de 50.

Com longa atuação na imprensa do Estado, Nair Perillo Richter sempre pautou seus textos pela análise romântica dos fatos, intitulando-se como “Cronista sentimental”. Sua linguagem rebuscada e excessivamente adjetivada indica um retrocesso estético na crônica goiana, insuflado também pela temática do sonho, divagações da alma, assuntos voltados para o sentimento e a emoção, assim como as primeiras cronistas dos jornais vilaboenses do princípio do século XX.

De uma visita feita aos primórdios de Brasília, deixou a crônica que abaixo transcrevemos, escrita no final dos anos 1960, no alvorecer de Brasília, e que foi inserida no acervo da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. Nela, exorta sobre o Cerrado cedendo lugar à nova capital e o pensamento de que, nele, nasceria o amanhã. Presente, também, o pensamento de amplitude infindável do Cerrado, de lonjura, de oco de mundo: “Mês passado, visitei Brasília com melhor disposição física e melhores condições de espírito. Minhas idas anteriores à cidade panorâmica que brotou como um sonho verde no planalto goiano, eram livres de todo e qualquer interesse, sem nenhuma pretensão de surpreender maravilhas naquele ‘show’ de cimento armado. Em meio ao cerrado, de árvores recurvas, tristes, tortas, assimétricas, espalhadas no planalto, nasce a inspiração de um futuro. Nos campos cerradeiros, nasce o porvir. Cheguei ali, quando a tarde completava o último giro do dia, recolhendo-se nas sobras de um sol cor de ouro velho, e, pela primeira vez, senti aquele céu mais perto de mim, roçando-me a alma com a leveza de suas nuvens”.

Pioneira, portanto, da publicação de livro de crônicas em Goiás, Nair Perillo Richter, em pleno 1974, configura, como dissemos, um pensamento romântico e sentimental das cronistas de A Rosa em 1907, embora na temática já demonstrasse interesse por assuntos de ordem política e social, sem, contudo, comentá-los sob uma ótica mais profunda.

São termos anacrônicos para a literatura de 1974 em que o modernismo já havia se consolidado com a renovação da linguagem e as imagens advindas de outros processos de significação.

Inclusive seu livro Canto de cigarra, publicado nesse ano, traz pensamentos românticos bem tardios, como se no gênero, o tempo não houvesse ainda passado. Mas há temáticas bem telúricas e cerradeiras como a chuva de caju, as queimadas, os campos e cerrados da região de Vila Boa de Goiás, os tipos de rua, os passeios nas matas e chapadas, impregnados de uma linguagem adjetivada e romântica, ainda nos moldes do começo do século XX.

Na crônica, percebemos que o gênero sofreu oscilações estilísticas e temáticas, embora não apresentasse evolução significativa com o passar do tempo.  A participação feminina nesse gênero, entretanto, notadamente com as precursoras, foi de relevante papel porque propiciou a discussão, mesmo superficial da realidade em que viviam, mostrando que a mulher ousou participar e tornar-se elemento de valor no processo de crescimento intelectual em Goiás, apesar dos espaços estarem amplamente ocupados pelos homens.

Antonio Juruena Di Guimarães foi um cronista por excelência. Iniciou ainda na Cidade de Goiás a sua carreira jornalística, no período da mudança da capital e depois em Goiânia, na Revista Oeste, tornou-se conhecido. No jornal Folha de Goiaz foi um grande colaborador. Ele é nosso cronista maior.

Suas crônicas espalhadas por todo o Estado, nos diversos jornais que atuou centram no momento, na época e no tempo. Revelam nuances de um Goiás de possibilidades e de crescimento no ideário das novas cidades como Goiânia e Brasília, nascidas no chão cerradeiro.

Em suas crônicas o cerrado se derrama. Há uma “O presente de natal de Ditnho” que narra sobre um menino pobre do bairro do “Chupa osso” da velha capital goiana. Continua o ideário de árvores raquíticas e fracas, desde as descrições do século XVIII. Assim descreve o ambiente: “O rancho era ali mesmo, bem unidinho ao sopé do morro das lajes, no bairro do Chupa Osso, olhando para um cerradinho de árvores raquíticas que havia em frente”. Narra ainda na crônica “E o velho rio…” sobre os morros, a natureza e o cerrado em torno da cidade: “Jogou diante de meus olhos o panorama quase irreal dos morros embuçados de branco, como monges fantásticos, cobrindo as árvores tortas e esguias, de chuva e a chuva escorrendo ladeira abaixo, rumo ao vale. Água no cerrado a lavar as cinzas de outrora”.

Interessante também a crônica “Zé Pequi” em que relata sobre o tipo de rua que atrelou seu nome ao fruto do Cerrado, em razão do enorme par de papo que tinha no pescoço. Da maldade humana de outras eras, nascia esse tipo de comparação. Mas, na sua inocência, de nada sentia os percalços da perversidade alheia. Xingava e bebia pelas ruas, era um tipo popular. Morreu e foi enterrado a custa da caridade pública.

Outro tipo popular relembrado pelo cronista e sua relação com o cerrado foi “Maria Jaó”, apelido consumado pela aparência da infeliz criatura com o galináceo cerradeiro e que tinha grande apreço pelo carnaval e a “Maria Arara”, que andava pelas ruas sempre com uma arara no ombro.

Também sua crônica “O velho tamboril”) retrata sobre a antiga árvore da porta do cemitério de São Miguel na Cidade de Goiás, espécie do Cerrado, ali deixado ainda nos idos dos oitocentos; quando o campo santo foi erguido, perto da Igreja da Santa Bárbara, assentada sobre um outeiro.

Assim narra o cronista: “Quando as manhãs ensolaradas de Goiás, um vento morno vem, escaramuçado, lá das bandas do Araguaia segredar-lhe os segredos morenos das virgens Carajás, ainda o filósofo vegetal procede como guardião das insondáveis coisas do espírito. Sacode, mansamente, a cabeleira de sua copa, num gesto todo indiferentismo. Nas tardes cismarentas de Vila Boa, quando os morros se aproveitam da ausência do sol, e começam a querer brincar de assombração, é no mastro do tamboril que os periquitos vão hastear as bandeirinhas verde-amarelas de suas penas e executar o hino alegre de sua algazarra sem pretensão a patriotismo”.

Contista, cronista, historiador, Altamiro de Moura Pacheco, como cronista, devotado à terra e à tradição, deixou impresso uma belíssima e erudita crônica acerca do descomunal jatobá que havia nas proximidades do Rio Meia Ponte e João Leite, nos primórdios de Goiás e que foi brutalmente destruído pela incúria humana.

Em sua crônica sentimental e bela, destaca sobre a grandeza do velho jatobazeiro, imponente, grandioso, abrindo-se em copa sobre os demais. Descreve os pássaros em seus galhos, a sua visão do vale do Rio Meia Ponte, olhando Goiânia nascer, se transformou em símbolo da mesma, como a riqueza e a pujança da terra do coração do Brasil.

Em tons de beleza, ressalta seu valor: “Zimbório maior acuminando a verdura estonteante dos longes que se afastam e se perdem na luxuria aquinhoada pela riqueza botânica do Centro-Oeste”.

Usando de uma linguagem rica, adjetivada e emocionada, relembra a velha árvore das matas goianas, como testemunha de um tempo, mas dolorosamente destruída pela maldade humana de quem, por crueldade, lhe acendeu uma fogueira nas raízes para matá-lo: “Sempre com a majestade de rei da selva, o idoso Jatobá varava o cortejo de vintenas de séculos, desafiando o ir-e-vir das intempéries. O leque possante de raízes protetoras da barranca esquerda do Meia-Ponte e do João Leite, processionalmente juntos a seus pés, fazia-o ereto no solo humoso, empertigado no espaço, e firme qual invicta coluna a sustentar frondoso e galhardo capitel. Sobranceiro às mais altas copas tapizantes da mata virgem, era atraente pouso de garças, colhereiros, tucanos e sabiás. Das garças, providencial miradouro de onde, vigilantes, contemplavam o sonolento remanso das lagoas; dos colhereiros, observatório do qual o deslizar das caudais era o irresistível convite ao vôo paralelo às vias liquidas em que os peixes exibindo agilidade saltitavam e brincando apostavam carreiras vencendo correntezas; dos tucanos, elevação predileta donde, com bico reluzente ao sol, adejavam planando às comas espessas das copaíbas em frutos; e dos sabiás, campanário divinizado para o melodioso trinar de louvores à natureza Planaltina. Jatobá histórico dos primórdios de Goiânia, marco imperecível das paginas literárias do batismo cultural da Capital nascente, foste o adorno das franjas viçosas do Mato Grosso anhanguerino. Foste, na exuberância do porte, o expoente máximo do poder vegetal dominante do soberbo emaranhado de preciosas e estimadas essências florestais”.

Belkiss Spencière Carneiro de Mendonça, além de reconhecida pianista, de fama internacional, foi também cronista e pesquisadora. Sua obra literária tem especial relevo em recordar os primórdios de Goiânia e os tempos da antiga capital, assim como o chão do Cerrado e a natureza exuberante goiana.

Em seu livro de crônicas Andanças no tempo, a cronista revisita a história sob várias nuances, sob vários pontos de vista. Em algumas destaca sobre o Cerrado e suas variantes entre o passado e o presente. Em “As viagens de ontem”, narra sobre as peripécias de se viajar de Goiânia a Brasília nos primeiros tempos, com carro que atolava e as esperas no Cerrado, eram compensadas com a colheita dos frutos disponíveis: “Como a pressa de chegar estava fora de cogitação, as paradas eram aproveitadas para se colher gabirobas. Redondinhas e doces, ficavam escondidas nas touceiras e o ‘cuidado com as cobras’ era o aviso constante, pois também elas tinham bom gosto, sabiam apreciar o que era bom”.

Na crônica “A Tocantins de ontem”, destaca sobre a antiga Avenida Tocantins de outrora, no centro de Goiânia. Relata seu aspecto bucólico, da Praça Cívica, á Praça do Avião, com suas belas espécies de árvores nativas do Cerrado. Era a cidade que invadia o a antiga campina do campo limpo: “Desde a Praça Cívica, até a do Avião era aquela beleza! Flamboyants floridos e vermelhos derramavam cores que deslumbravam. Perto da Santa Casa os ipês floridos, de diferentes cores, animavam a vista. Para baixo, o Cerrado amplo que ainda seria todo o Setor Aeroporto. Lixeiras, gabirobas, mamacadelas, paus terra, lobeiras se derramando pela campina solta”.

Telúrico e inspirado, Carmo Bernardes, também na modalidade crônica foi um exponencial escritor. Dedicou-se por muitos anos como cronista do Jornal O Popular, em Goiânia e participou do programa Frutos da Terra, retratando sobre o Cerrado, o folclore, a literatura, os usos e costumes de nossa gente.

Estudioso do Cerrado, em todas as suas produções buscava conhecer o Bioma, reconhecer seu valor e lutar por sua preservação. Foi antes de tudo um ambientalista. Relata o mesmo sobre os remédios do campo e do Cerrado: “Urucum e flor de sabugueiro combatem o defluxo, a tosse seca e o chio dos peitos. Não tem mal que põe pessoa pampa que as mãos e as pernas pintam de branco feito leitoa escaldada? A pois, se o inharé, que uns conhecem por mama-cadela ou fruta de cera, curam”.

Em suas crônicas, há trechos e trechos em que, ao falar sobre o Cerrado, ensinava: “Açoita cavalo é árvore cujos ramos muxibentos servem de açoite, sem que se quebrem, e cujo cerne é apropriado para fabricar coronhas de espingardas, pois é leve e forte: “Tive que cortar para ele uma guaspa de açoita-cavalo e dar-lhe um pé de espora dos meus”. Sobre o angá-rosário, também espécie nativa do Cerrado: “Mato de cultura boa é de pouca fruta. Pode reparar: a guapeva, o angá-rosário, nas beiras de rio, o jaracatiá, e mais o quê?” Ainda sobre o anil, que é arbusto também chamado anileira, cujos ramos fornecem o anil de tingir roupa: “…e fazia dois feixes morrudos de rama de anil, desse anil da folha miudinha e da semente no feitio de unha-de-gato.”

Sobre as madeiras, em suas crônicas, destaca sobre a aroeira: “E esse dito toco é de aroeira, pau durável que nunca acaba.” Também sobre outras espécies: “O angico, a canela, a sucupira, o óleo, a garapa, a aroeira, etc. são os vegetais mais comuns que entram na composição dessa mata secundária ou mato seco”. Também sobre as frutinhas dos campos, como a azedinha-do-campo fruta silvestre, conceituada em seu livro Reçaga: “O cerrado em redor era quase que só de mangabeiras, panhei e pus na boca para mascar uma folha viçosa de azedinha-do-campo, que também era muita ali”.

Escritora polígrafa, Maria Paula Fleury de Godoy se destacou tanto como contista, cronista e poetisa, trazendo a modernidade para as nossas letras a partir dos anos de 1920, juntamente como Leo Lynce e João Accyolli.

Como cronista, Maria Paula Fleury começou bastante jovem a sua atuação, ainda adolescente no ano de 1911, com manuscritos interessantes, narrando, de forma epistolar, sobre o cotidiano da Cidade de Goiás onde vivia.

Narra ela, já na consciência do lugar, as peripécias de uma viagem de Goiás aos centros mais adiantados do País naquele tempo, há mais de cem anos. Narra ela sobre o recanto pitoresco em que vivia, num outeiro em Goiás e descreve as 56 léguas de distância entre Goiás e Araguari, ponto final da Estrada de Ferro na época. Fala do calor, das estradas poeirentas e do cenário cerradeiro. Depois sobre as “Cousas de Goyaz”, do mesmo ano, narra as festas, os eventos religiosos, os costumes, as paisagens tão belas que serviriam de cenário para um quadro de grande pintor. É o pensamento de uma mocinha de 16 anos sobre o mundo que a envolvia e, então, descrevia.

Em 1917, Maria Paula Fleury de Godoy iniciou a publicação de seus trabalhos na Revista Feminina de São Paulo, então uma das mais importantes do País. Com 20 anos de idade, já era conhecida por seu talento e por evocar fatos relacionados ao Cerrado, ainda naquele tempo, completamente desconhecido, em que, numa crônica destaca sobre o “Burity queimado”.

Nesta crônica relata sobre o buriti “altaneiro e esguio, dominando as árvores franzinas”, ou seja, as árvores enfezadas do Cerrado; mostra o orgulho do buriti por ter “airosa linha do longo espique o orgulho natural e insolente dos favorecidos” e se destacar entre as outras árvores tortas e franzinas. Mostra-os feliz e elevado, nas manhãs balançantes, beijado pelo sol, até que um dia a mata pequena e “feia” do Cerrado foi cortada e amontoada e só sobrou ele ali, solitário, na paisagem nua e morta. E vem o costume da queimada, quando tudo arde e ele ali, em meio às chamas também se vê torturado pelo calor e pela fumaça de desprende dos galhos secos do cerrado derrubado.

Maria Paula Fleury de Godoy publicou oito livros e deixou outros tantos inéditos. Sua obra constitui o que há de melhor da produção feminina goiana no século XX, imortalizando o talento e a sensibilidade da mulher de Goiás em relação ao Cerrado e á natureza.

Em todos esses autores, cronistas e pensadores, é possível um pensamento de indignação em relação à destruição do Bioma território Cerrado, do avanço das cidades, da incúria humana em relação ao meio ambiente e um despertar para a biodiversidade.

A crônica, como gênero cotidiano e rápido, conseguiu demonstrar toda a preocupação dos autores goianos em registrar a rápida destruição do Bioma e a necessidade de esclarecimento dos leitores sobre esse problema, que, também, de forma mais profunda, evocam os grandes problemas que afetaram seu tempo e seu meio.

A todos eles que, morrendo, deixaram o brilho de suas inteligências como luzes no céu goiano para todo o sempre.

 

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Literatura e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura e Linguística pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. [email protected])


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