O desejo
Redação DM
Publicado em 14 de janeiro de 2017 às 01:32 | Atualizado há 9 anos
Ela passa sua tarde de sábado olhando no espelho, tira roupa, põe roupa. Não dá, decotada demais ele vai me achar vulgar, pensa. Quatro horas depois, o mesmo ritual iniciado, recomeça com os brincos e adereços. Em duas semanas leu e devorou “Como fazer amigos e influenciar pessoas” e “Arte de seduzir”, nas horas de folga sabe , se lá o que vai rolar. Tudo bem, primeiro encontro, fica nervosa, quem sabe seja a conquista do namorado prometido pela cartomante há um ano. Ele é tão lindo…
Roupa escolhida, adereços eleitos, agora a terceira parte: escova no cabelo, retira sobrancelha, depila, pinta unha e maquiagem. E então, a novel pictures apresenta a sua mais nova superprodução: “Ela! A mulher fatal”. Realmente linda, perfeita, tudo bonitinho, combinando tudo que na atualidade a moda decreta como exigência básica.
Às vinte horas, o encontro marcado. O rapaz tenta disfarçar, mas acha o cheiro do perfume insuportável. A roupa da moça lhe deu vontade de rir, igualzinha da novela, parece uniforme, flor ridícula no cabelo e, maldição, o que ela fez com seus cachos tão bonitos? O resumo da ópera é que virou apenas um encontro fortuito, forçado, sem espontaneidade, acabou com o que poderia ser um início de um relacionamento legal. E é isto que acontece na maior parte das vezes, quando retiramos a espontaneidade do início de uma relação.
O desejo é algo natural ao ser humano. Quando nos interessamos por alguém uma série de mecanismos instintivos são despertados e acabam mexendo com todo nosso corpo. Na maior parte das vezes, o desejo surge de forma inconsciente, algo sem explicação, que nos mobiliza por inteiro.
Popularmente chamamos o desejo de tesão. É à vontade de ver alguém, de chegar perto, abraçar, beijar, tocar, dar e receber carinho, e se possível algo a mais…
O desejo é incontrolável, algo ambíguo, difícil de explicar. Trás em sua bagagem o eterno confronto entre a moral e os nossos instintos, o que por vezes queremos, mas não podemos. Desejo enquanto instinto puro, não reconhece o que é proibido.
O controle de nossos instintos condiz com a evolução tanto pela educação, quanto pela evolução espiritual. Todavia se confunde controle com extinção, o que é tosco. O problema da sexualidade funde-se ao descontrole, tanto para o excesso quanto para a falta.
É o desejo que apimenta uma relação. Quando ele deixa de existir, um relacionamento esfria, perdendo seu sabor. Embora hoje a indústria farmacêutica invista trilhões, tentando pesquisar estimulantes e excitantes para aumentar o apetite sexual, no discurso da bioquímica, raros destes tem sua eficácia, porque o desejo tem sua base em coisas muito simples, como o carinho, a sedução, o cheiro, pequenos toques,… O desejo artificial não atinge nossa esfera afetiva. Pessoas alegres, cheias de tesão pela vida, intensas, não necessitam destes recursos.
E o pior problema na atualidade é a cisão pregada por diversas classes de profissionais – que agem como amadores – tentando cindir o que não tem separação, a exemplo, falta de desejo não atinge apenas a vida sexual. Geralmente, é um quadro que se alastra por todos os campos da vida, seja no ato de ouvir música, vibrar com pequenas coisas, ler um livro, ver um filme, enfim, em tudo a falta de desejo se manifesta. Nem se fale aqui, das centenas de relacionamentos de pessoas que se toleram com nojo e que necessitam de recursos mágicos para tentar salvar o que já ruiu há tempos. “Distantes demais”. Nem o beijo, nem o cheiro, nem o toque, tudo isto nestes casos, gera apenas repulsa e asco. Alguns casais necessitando do chamado porre, para poder ter a coragem de encarar o dragão. Casal feliz…
Em um mundo pautado pelo virtual, pelos relacionamentos superficiais, pela comercialização da afetividade, pelo narcisismo intenso, pelo egoísmo inato, na maioria das pessoas há consequência direta, é uma legião com milhares de pessoas que não sabem o que é amar, se entregar, curtir, se relacionar com qualidade. Apenas pregam a quantidade como fator de realização, o que é patético. Na vida de plástico da atualidade, esquecem fatores básicos, para poder ter o mínimo de tesão: ser cordial, educado, carinhoso, higiênico, enfim querer tanto se agradar, quanto agradar a pessoa que se deseja.
Em nossa atualidade, este quadro infelizmente é inverso, é comum encontrarmos pessoas que acreditam estarem fazendo um imenso favor ao outro, se relacionando. São tão cheias de si, tão gostosas, tão lindas que acabam por ficarem sozinhas. Respeitar o desejo é básico para qualquer relacionamento dar certo.
Saiba mais acessando: http://olhosalma.com.br/?g_id=202&idc=30
(Jorge Antonio Monteiro de Lima, analista, pesquisador em saúde mental e psicólogo)