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OPINIÃO

Campinas, essa desconhecida

No ano em que regressamos de Guapó, meu primo Galbas Tavares de Moraes, ambos com a mesma idade, aos doze então, ajudou-me a descobrir a enxadrezada e esparramada Campinas de cem quarteirões. Era a Campinas que tínhamos, com seus parques de diversões de ponta de rua e que perdemos também durante os anos, ao distanciar-se quietamente a cada casa derrubada. E como gostaria que ele tivesse visto, como eu, que venho escapando das incertezas da vida, a maravilha que alguém de fora criou tocado apenas pela ilusão de um grande sonho. O Galbas, arribado para outras bandas, volto a dizer, não viu, mas eu não, que continuei firme na Campinas que havíamos perdido, mas já com outros propósitos bem menos inocentes fiquei feliz como um garoto que sobe a escada e com dedo tímido aperta a campainha do apartamento da primeira namorada. A boate King surgiu do naufrágio de uma dessas casas e ficava no trecho pecaminoso da 24 de outubro entre as ruas p-33 e p-13, no Setor dos Funcionários, florescido com as construções dos palácios de J.K., a mais de 200 Km de distância. Night and Day, Zum-Zum, Restaurante Milionário, Boate Monalisa, Saint Tropez, El Tango - parecendo quadros, de repente, lançados para fora da moldura -  não esgotam a série de casas noturnas que surgiram naquele trecho como se fosse um passe de mágica. Época em que mulheres espinhentadas-de sapatos na mão e mala na outra-fugiam das cafetinas de Londrina, Bauru, Maringá, Riberão Preto, Marília e até da longínqua Belém do Pará, essas últimas chegadas aqui pelo pinga-pinga da Pané.

Vieram atraídas pelo cheiro do ouro de Brasília e dos barões do bon-michet. No rastro, malandros gafiolas, jogadores de pif-paf, o conhaque Fundador e o whisky Cavalo Branco ou Johnny-Haigh's. Quando ele começou aquilo ali, parecia estar recorrendo a certo hipnotismo, no desejo de abolir completamente o controle da razão, pretendendo dessa forma chegar ao absoluto automatismo psíquico, para que pudesse sair das profundezas do seu ser, o hóspede estranho e maravilhoso que cada um de nós traz dentro de si.

Chegou em 61 com força de rinoceronte, que caminha a trote curto antes de atacar e montou em 63, como consignatário, o seu próprio negócio, a Boate King, pequena e quase irreal de tanto luxo. Um mundo nascido de um sonho longamente acariciado e da imaginação. Ele era um arrivista impetuoso, verdadeiro filho da noite, que chegara aqui depois de passar pelo porto de Santos e suas docas. Trabalhou primeiro com a dupla Wilson Amaral e José Careca, depois na Monalisa e, por último, antes de armar a sua tenda de sultão, no Saint Tropez. Quase de cara, o empreendimento não deu certo, proibido logo pela economia inelástica de então. Visto, porém, sob outra perspectiva daquele momento em que o dinheiro chegou-lhe às mãos para jorrar às mancheias, foi apenas uma oportunidade que ele teve para expressar-se sem restrição alguma. E foi longe demais.

Paredes revestidas de gobelins falsos, com motivo floral, as mesas muito bem postas completavam a elegância do ambiente, guarnecidas por toalhas brancas e sobrepostas por uma ou outra em tom rosa esmaecido, cortinado da mesma tonalidade e montadas em copos e taças de cristal. Tudo o que ali se via, sob visão perspicaz, não passava da mais pura transfiguração de suas emoções estéticas. Não foi visto apenas o aquecedor!

Se não lhe faltasse o espaço físico acrescentaria àquela alcova coberta de baldaquim, cheia de predarias e damascos, as paredes envidraçadas de um novo Ermenonville para proteger o seu jardim de inverno. Onde estávamos com uma apresentação daquela? Iria servir suntuosos banquetes? Não dava a menor atenção aos avisos dos amigos de que o projeto fugira da realidade. É possível que ele pensasse que estivéssemos em Paris, pois, pelo jeito das coisas ali, esperava receber em sua casa prostitutas de luxo, maquiadas com arte, ricamente vestidas e resplandescentes de lantejoulas e pérolas, naturalmente em companhia de homens vestidos de sobrecasaca e de um foulard de seda branca negligentemente enroscado em torno do pescoço e ao volante de um Bugatti. Seus olhos negros, cheios de fogo e sombreados por cerradas sombrancelhas, causavam certa sensação involuntária de terror naqueles sobre os quais chegassem a fixar. Por hábito, por arte, por desejo de fazer-se sempre temido, ele não olhava nunca de frente, tinha de ordinário a cabeça inclinada e mirava as pessoas debaixo para cima por entre as sombrancelhas sinistras. Com seu casaco de mangas bufantes esquecera-se apenas se cingir à cintura o punhal e aos cabelos em caracois negros a touca de veludo dos Bórgias.

Igual à Luzia Poltrona, lá dos fundos da Praça A, sua contemporânea que jamais observava a linha de flutuação do barco em que boiava, seguiu para Brasília saindo de escoteiro. Sem alfaia alguma, seu inventário não causou estrupício. No entanto, devemos a ele a arrancada inicial de um mundo maravilhoso, surrealista, com seus mistérios, seus símbolos, sua poesia, fazendo destruir servidões e convencionalismos que ainda nos escravizam à realidade e à razão.

No coice da sua derrocada e no mesmo endereço veio o El Tango. Chegou sem luxo, tranquilo, mas precedido por uma lanterna de divina claridade. A Cantina El Tango foi outro empreendimento de Wilson Amaral, de custo mais barato que a Monalisa e destinado exclusivamente aos amantes do tango canção e instrumental. Era uma casa pequena, gostosa, bem freqüentada e exibia como atrações fixas um bandoneón chamado Alberto Castelli, outra cobra de San Telmo, e um cantor negro com grande repertório do tango canção. Destinado apenas para aqueles que realmente apreciavam esse gênero de música, abria suas portas as 23h todos os dias, fora os domingos. Esse Alberto Castelli – nada de cabeleira brilhante, preta, lisa, gomalizada, não tinha nada do malandro milongueiro argentino, profeta romântico e poeta das perdidas, pelo contrário tinha os olhos tristes, más tocava tudo. Era um verdadeiro delírio com o bandoneon nas mãos: Henrique Cadícamo, Canaro, Discepolo, Le Pera, Juan de Dios Filiberto, Cobián e Matos Rodriguez, e seu estilo nervoso, rápido e ritmado.

O tango é triste, é quase sempre uma queixa dolorida, de letra metafórica e faz alusão ao guarda-roupa da mocinha do subúrbio vestida de percal e à perdida em manteaux de arminho. Cria também turbulência, um passado irreal, que de certo modo é certo. Um recuerdo impossível de estar morto em luta em que relampagueia a faca em outra esquina desse mesmo subúrbio.

Com a cabeça ligeiramente jogada para trás, a boca melancólica, levemente desdenhosa de todos aqueles que se sabem realmente artistas, deixava escapar a onda ritmada do seu instrumento, do som mais triste e mais comovente que jamais existiu. Para os verdadeiramente amantes do tango argentino, Alberto Castelli provocavam um aperto em todos os corações, molhava todos os olhos e, no arrepio de admiração que propagava ao longe, nos fazia tremer, curvava-nos todos, um após outro, numa silenciosa e solene ondulação dos trigais ao vento. Um artista, nascido já encartuchado em eterna busca da beleza, da verdade, com a sua assombrosa imaginação. Em seu instrumento se escondiam tristezas infinitas, vagarosa ou vigorosamente exprimidas pelas teclas em caroços, em cálidas recordações da pátria, não sabendo que estranha e melancólica sombra o separavam daqueles tempos, daqueles sítios, que não volveriam jamais. Eis as cenas esfumantes da Campinas louca e gloriosa daqueles tempos que muita gente não viu, devassa e amante, alegre, triste e transitória, frívola e irresponsável, que os anos 50 e 60 viram nascer e brilhar de repente, passando como uma chispa, um corisco pelo arame de sua história, naquelas noites de tempestades e calmarias. A doidera acabou. As luzes encarnadas foram desmaiando e as casas foram deixadas para outros inquilinos bem diferentes. Quem viveu os anos de ouro viveu. Quem não viveu, não olhe para trás. Campinas é outra e aquela não existe mais!

(Vasco de Oliveira e Silva, historiador e articulista da AGI)

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