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OPINIÃO

Crianças pioneiras na literatura goiana

Vamos mostrar aqui os três primeiros livros escritos por crianças e lançados em Goiânia na década de 1960. O primeiro foi ROSA NO VENTO, por Maria Lúcia Felix, nascida em 1950, pela Editora Leitura, Rio de Janeiro, em 1965, escrito entre os 6 e 12 anos de idade. O prefacio é do seu pai, o escritor e orientador cultural Domingos Felix de Souza, com comentários por Renard Perez (Rio).
O segundo e terceiro livros saíram geminados, em um único volume: O MURO QUE VOAVA, por Nancy Ortencio, minha filha, e ESTÓRIAS DO CERRADO, por Ivo Metran Curado, filho do escritor da Academia Brasileira de Letras, Bernardo Élis e a poetisa Violeta Metran Fleury. Nancy tinha 11 anos e Ivo, 12. O lançamento foi da editora F.T.D, São Paulo, em 1967. O prefácio da Nancy foi pela educadora Lucia Benedetti (Rio) e o bico de pena por Amaury Menezes (Goiânia). O prefácio do livro do Ivo é da também educadora Nely Alves de Almeida (Goiânia) e o bico de pena por Siron Franco (Goiânia). A capa e as xilogravuras, pela renomada artista-professora Maria Guilhermina (Goiânia).
Nancy Ortencio nasceu em 29 de dezembro de 1953, em Goiânia. É filha de Waldomiro Bariani Ortencio e Ana Silva Ortencio (Dona Leuza). Fez o curso primário no Colégio Santa Clara e cursou a 2ª série ginasial no Instituto Assunção, nesta Capital. Em 1964, com 10 anos de idade, quando cursava o 4º ano , escreveu, em classe, o seu primeiro conto, “A Negrinha”, para o grande concurso literário do “GEN-Grupo de Escritores Novos” somente para crianças até 12 anos, com o apoio dos diretores dos estabelecimentos de ensino. Com este continho Nancy levantou o prêmio entre quase 1000 candidatos. Incentivada pela prêmio fez mais 8 trabalhos no gênero, até 1965. Em 1966 escreveu “Macacada” para completar 10 estorinhas a pedido da Editora F.T.D., pretendendo, a grande editora católica, com livros escritos por crianças, incentivar e descobrir vocações literárias dentro das escolas. Nancy gosta de nadar e leu os autores Irmãos Grimm, Anderson e Monteiro Lobato.
Prefácio do ROSA NO VENTO, por Domingos Félix de Sousa
Hoje já não mais me impressiono tanto, talvez pela renovação contínua do milagre. Depois, com algum tempo as experiências mais estranhas tendem a cair nos sadios limites do senso comum. Ademais, vivo na era em que nasci: um mundo ilhado onde as riquezas do folclore assoberbam maravilhas de lirismo jorrando dos lábios de roceiros incultos, de idade mental fixada em nível pouco superior ao da primeira infância. E tal circunstância limita o espanto, excluindo a preocupação da ordem sobrenatural, e nos expõe submissos perante o deslumbramento único e eterno da poesia. Certo é que Maria-Lúcia vai entrando pela puberdade, continuar a recompor com a mesma naturalidade a poesia da infância – de sua particular infância. Venceu portanto o passo em que – seria natural – a precocidade da sua experiência poética se estiolaria. É verdade que seus novos temas se resolvem num tom diverso, a poesia brotando agora balisada por um precoce travo crítico, uma sadia insatisfação, um repúdio quase frontal aos poemas da primeira idade, que vieram constituir, selecionados por ela própria, a substância de seu primeiro livro prestes a fugir do círculo restrito em sua poesia até hoje circulara para alcançar um público indiscriminado, mais apto decerto a julgá-la. E isto de certa forma me liberta. Sinto que posso falar da autora com relativo alheiamento, trazendo meu depoimento sobre a continuada e sempre renovada introdução à experiência poética que, ao longo destes últimos anos, tem significado para mim acompanhar o nascimento dessa torrente ininterrupta de poesia que flui sob os meus olhos.
Nasceu a 14 de julho de 1950. Matriculada na terceira série ginasial. O pai exigente, professor antigo, não julga nenhum modelo de estudante. Desinquieta, insatisfeita, repetindo talvez na vida a inquietude manente de sua poesia. Aprendeu a ler escrever excepcionalmente cedo, e lê muito, está claro. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, visto o tom introspectivo e prematuramente amadurecido de seus temas, é uma garota de gostos naturais (ou quase), bastante esportiva, reações normais. E, se ama a música de classe, também se desengonça feliz aos compassos do “twist”, graças a Deus. Não tenho orgulho de minha filha por ela ser poeta, mas também é certo que amo muito mais a poesia por causa de seus poemas. Tinha o costume de ler-lhe, ou melhor, acomodá-la a meu lado enquanto lia, para mim mesmo, páginas extensas, dessas que pedem a leitura em voz alta. Nunca imaginei que a pequerrucha acompanhasse atenta, e também se encantasse com as páginas ouvidas, sabem os céus até que limite compreendidas. O certo é que o recurso converteu-se em hábito. Assim um dia, tinha ela seis anos, pediu-me com a imprudência natural da infância que lhe lesse um poema. Lembro-me que atribulado me preparava aquele momento para aplicar uma injeção. O aparelho ardia sobre a mesa, e me parece que muitos interesses exigiam ainda meu esforço naquele começo de noite. Aleguei – penso que com certa aspereza – não ter tempo. A pequena insistiu: - “Inventa então uma poesia sua mesmo”. Acho que lhe respondi meio impaciente: - “Ora, invente você mesma qualquer coisa” (Claro que estava errado, porém mal sabia que naquele momento acendia uma centelha capaz de me iluminar e aquentar a alma pelo resto da vida). Maria-Lúcia ficou quieta, muito tempo, e já andava eu rebuscando uma saída “honrosa” para a situação criada pela minha impaciência, por meu cansaço de momento, quando veio sua vozinha, ainda lembro o tom sumido, talvez um tanto humilhado: - “Então eu vou inventar a poesia do fogo”. Olhei-a. Muito séria contemplava fixamente a chama do álcool no aparelho, e recitou espontânea:
“Fogo, você é tão bonito!
Você parece uma flor que eu pego com a mão.
Fogo, você é tão bonito, por que você me queima?
Será que é só para me ver sofrer?”
Foi o primeiro deslumbramento. Deus sabe o que senti quando aquele pedacinho de gente enunciou este achado: “você parece uma flor que eu pego com a mão”. Fiz um gesto para a mãe, que escrevesse depressa aquilo, e, mais ou menos habilidosamente, alcancei que a menina repetisse o improviso. Ela já escrevia então, mas sei que não seria ainda competência para traduzir no papel sua rápida inspiração. E assim continuou por alguns meses. Ditava à mãe, às tias, à mocinha babá os versos que ia compondo, até que se libertou, passando a escrever por si mesma os poemas, numa letra desigual e comovente, tipicamente infantil, contrastando já então com a substância perturbadora dos versos encadeados. A babá era uma roceirinha, sabia ror de trovas do folclore goiano, quase todas compostas em redondilhas, e julgo encontrar em sua influência explicação para a rapidez com que a menina de sete anos logrou compor seus poemas naquele ritmo natural e sem escolas. Pensei a princípio tratar de uma comichão passageira. Final de contas, toda criança é poeta, não sendo mais o poeta que um ser em que os valores e a visão da infância perduraram. Mas, depois que ela havia composto uns dez ou mais poemas, sempre com a mesma fabulosa espontaneidade, tomou-me um respeito quase místico por aquele milagre da arte; e se logo me dediquei a recolher cuidadoso todas as suas composições, zelando para que não se perdessem, por outro lado senti-me inteiramente inibido para qualquer participação, mantendo-me alheio, ou pelo menos à margem de seu desenvolvimento artístico. Apesar das críticas que por isso me fazem os que julgam dever eu “aproveitar a veia” da pequena, ensinando-lhe os mistérios da arte poética, julgo sinceramente que um talento assim precoce (se de minha filha ou não, pouco importa) deve desenvolver-se como uma flor. Mesmo que se estiole. Ou melhor, ainda que sofra o risco de fenecer precocemente, como nasceu. É o risco natural da precocidade. Demais, o maravilhoso está em conferir de continuo como a poesia, perenemente renasce, recriando-se inelutável na busca de seus eternos caminhos. E hoje, diante dos poemas de Maria-Lúcia, alcancei manter a postura receptiva do leitor comum, ou do poeta comum, a captar o estimulo renovador advindo da mensagem de um companheiro mais novo.
Prefácio do O MURO QUE VOAVA, por Lúcia Benedetti (Rio-1967)
Benza-a-Deus, a menina, a bem dizer já nasceu escrevendo. Que idade tinha quando ganhou o seu primeiro prêmio literário? Foi em 1964. Teria 8, 9 anos? Nessa idade as crianças estão quase sempre rodeando os mais velhos, procurando angariar subsídios para a composição escolar. E já a nossa autora recebia uma láurea. Tem qualquer coisa de pungente a história escrita por essa criança e que termina assim: “E quando saía à rua da pequena cidade, toda a gente a respeitava, porque agora é rica e até os moleques da rua a acham bonita”. Dói sentir que uma criança percebe e fixa com tamanha nitidez a fronteira que existe entre o tratamento dado a um pobre e a um rico. Mas, ao mesmo tempo que treme o coração, uma leve e otimista sopra em nossos ouvidos: é inteligente, a pequena. Este pequeno conto que está contido na presente coletânea não é o melhor. Pode-se até dizer que é um trabalho imaturo, junto a outros que vieram depois. A “Negrinha”, conto premiado, é inferior a “Pequerrucha”, o conto que abre o volume. Entretanto, se o tratamento é mais perfeito e já existe um certo virtuosíssimo de desenvolvimento, nota-se uma mesma constante – o triunfo através do dinheiro. Na primeira história, um pato põe ovos de ouro. Na outra, uma vaca espirra diamantes. Pode parecer então que a nossa Nancy Ortêncio tem um ponto de vista estritamente materialista e que suas histórias são de um terra-a-terra irremediável. Seria grande engano. Nancy Ortêncio, na realidade, revela uma grande vocação poética. O encontro com a poesia é sem choques, suavemente, o leitor vai se embebendo vagarosamente, e quando fecha o livro percebe que atravessou um grande campo de lirismo. A história do pé de milho é tocante. Começa assim: “Vivia certa vez uma menina de dez anos que aparentava cinco, pois era muito maltratada por seu pai que não ligava para ela, passando até as noites fora de casa”. Que imenso poder de condensar o drama, mostrando com poucas palavras o sofrimento de um personagem! Mas, não é somente essa capacidade que mostra a autenticidade de Nancy Ortencio como uma grande vocação literária. Ela possui tudo, inclusive, o senso de humor. “João Sem Braço” nos faz sorrir: várias vezes Nancy mostra o lado humorístico de uma situação. No conto “A Barba do Rei Careca” ela dá uma das suas pinceladas rápidas e revela tudo: “Vivia certa vez um rei careca, feio pra burro, mas que pensa que tudo era lindo” E está descrito o rei, com uma segurança de mestre. Nancy nasceu ontem, é uma vocação em botão. Algumas vocações custam a surgir, são como a flor de Saint-Exupery, ficam toda a vida se penteando, se arrumando, antes de se debruçar sobre o mundo. Nancy vem ainda em botão , cheirando a orvalho, flor toda vida, seguramente uma escritora para sempre, penso que, a ela, também Deus ofereceu os dois grãos de milho, tal como acontece na sua história “O Pé de Milho”. Esses grãos são o talento e a vocação literária. Ela deverá fazer com que cresçam , vigorosos, dêem flor e fruto. Regados com seu tratamento, e com a graça de Deus, os grãos de milho pendoarão grandes obras e encheram os celeiros da nossa literatura. Em frente, Nancy, e que Deus de guarde!
Prefácio do ESTÓRIAS DO CERRADO, por Nely Alves de Almeida - Goiânia, junho de 1967
Encantadora tarefa essa que nos incubimos: prefaciar “Estórias do Cerrado”, livro de contos de Ivo Metran Curado. É obra de estréia e ele se revela, através dela, grande na pequenez de sua idade: com apenas doze anos, soube tirar, das contradições da vida, conceitos reais e surpreendentes. O forte em seus contos, transmitidos em linguagem clara e simples, é o cunho natural que empresta às narrações. Descobrimos, ao lê-lo, a visão da infância entrando na adolescência, trazendo, ainda, sem dúvida, a imagem das lembranças de meninice e revelando, ao público, o futuro grande escritor. Terceiranista do Curso Ginasial do Liceu de Goiânia, eleva ele o nome do seu colégio e traz justo orgulho aos seus colegas, dando lição de excelente técnica na arte de narrar. Vencedor de um concurso de “Contos Infantis”, promovido pelo SESC, em 1964, ele entra para a história literária goiana com esse atestado claro de quem tem autoridade para vencer.
Ao lado de sua parceira Nancy Ortêncio, premia-nos com a glória de sermos o Estado pioneiro em editar livros assinados por escritores quase meninos, enaltecendo uma geração. Estamos certa – seu livro será sucesso e muitos sucessos virão ao seu encontro, pelo futuro afora, que ele tem de quem herdar: filho do escritor Bernardo Élis Fleury C. Curado e da poetisa Violeta Metran Fleury, há, ainda, em sua tradicional família, muitos nomes de valor em nossas letras.
Suas estórias, contadas com propriedade, encerram grande fundo moralista; sabe, sobretudo, tirar conclusões acertadas dos relatos que expõe com arte. Aqui, ele adverte: - “Quem é muito guloso, ganha castigo!”; ali, ele afirma: - “Astúcia e inteligência a tudo vencem!” e, mais adiante, esclarece: - “Quem não tem astúcia, sempre perde da força bruta!” Estamos prevendo: “Estórias do Cerrado” vai trazer alegrias a grandes e a pequenos. Seus personagens, quase todos são animais, são bichos do mato e eles falam! Conversam com desembaraço, como qualquer vivente, fazem peraltices, traquinadas... e o papagaio que estourou na barriga do homem que comia carne na sexta-feira da paixão? Imaginamos como sua lembrança ficará imperecível na memória de nossa petizada! Imaginemos, também, a pena que, com ares de advertência, vai calar, sentida, na alma de todos, ao conhecerem a tristeza , o remorso do Vagalume Tem-Tem, que, teimoso, não escutou o chamado dos pais presos na garrafa! Sabemos que Ivo não vai parar por aqui: ele irá além e seu lugar, em nossa literatura, já se reservou. É sagrado o que nos vem da adolescência: ela é o despertar dos sentidos para as belezas do mundo e tudo de bom que nos traz é mensagem de Deus, brindando a vida. Por isso, tiremos dessa mensagem as palavras com que vamos saudar a esse nosso pequeno grande amigo – Ivo Metran Curado, num ato de fé em seu futuro.
Estiveram presentes no lançamento na Livraria F.T.D, Avenida Anhanguera, o senhor Governador do Estado Otávio Lage de Siqueira, o Bispo Dom Fernando dos Santos, Jarmund Nasser (Secretário da Educação), Jerônimo Geraldo de Queiroz ( Reitor da UFG), escritores, parentes e amigos. Maria Lúcia Felix Bufaiçal é cronista semanal no jornal O Popular, publicou vários livros e lançou, esta semana, CRÔNICAS REUNIDAS. Nancy Ortêncio é jornalista e empresária em Goiânia, publicou, posteriormente, na Editora RHJ de Belo Horizonte, ANINHA, A MURIÇOCA, com ilustrações de Ferruccio Bergolin Filho. Ivo Metran Curado é médico oftalmologista em São Paulo e não me consta que tenha continuado com a carreira literária, tão bem começada.
Macktub!

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