Jesus e João eram primos e companheiros. João batizou Jesus Cristo. Cristo batizou João. Ambos foram batizados nas águas do rio Jordão. Igualaram-se, assim, os dois, pela instituição do batismo, e têm, um e outro, nas festas que lhes são consagradas, a sua árvore. O reino vegetal, na sua humildade, colabora, dessa maneira, na exaltação de um santo, e na glorificação de um Deus. A árvore de Jesus Cristo é o pinheiro de Natal. Importada do Oriente europeu, tornou-se nossa, com as tradições adquiridas. Mas, é a árvore da gente rica. É a árvore dos felizes. É a árvore das casas em que sobra o pão. Em dezembro, erguem-na os venturosos na sua sala de visitas ou no salão de jantar. Feita de palha morta, pintada de verde, abre ela os braços rígidos, imóveis, como quem quer abraçar e se sente, de súbito, paralítico. Mas é toda enfeitada e, à noite, toda ela se ilumina. Dos seus ramos que o vento não embala, que os insetos não buscam, e em que as aves não pousam, pendem brinquedos coloridos, como se a árvore tivesse ficado leviana, depois de morta. São bonecas de celulóide, navios e locomotivas de folha, animais de borracha, bolas de metal faiscante, e entrelaçando a indústria e a fauna estranhas, fios de neve metálica e fulgurante, que se enramam em tumulto, e em que as luzes se multiplicam fantásticas, fazendo lembrar o pórtico do palácio das fadas, nos sonhos infantis. Na extremidade dos galhos mais longos, tremem velas pequeninas, - verdes, vermelhas, brancas, amarelas e azuis – empinando as miúdas línguas de chama, como as de crianças que rezassem. Tudo é vida artificial, em torno da árvore morta. E a árvore de Jesus estira-se, de pé, no interior da casa dos ricos, como um cadáver embalsamado, e coberto de jóias.
A árvore de João Batista é pobre, mas viva. Nos sertões do norte e nordeste, corta-se para a fogueira, nas vésperas do seu dia, a lenha seca e morena. Arrumam-se as madeiras, comprimidas por um arco de barril, ou por um cipó áspero e resistente. Cava-se um pouco a terra, e fixa-se, nela, o feixe grosseiro e oferecido em cumprimento a uma promessa. Pela sua elegância, pelo seu feitio, e pela sua feição doméstica, o vegetal escolhido para o sacrifício, é, geralmente, o mamoeiro. De preferência, o mamoeiro que não deu fruto, ou então aquele que já não o dá. Com o seu colar de flores miúdas, cor de cera, o mamoeiro virgem, ou senil, estende seus braços, em cujas pontas estremecem mãos verdes e largas, que abraçam e se despedem. A tarde toda, o tronco cercado pela lenha, farfalha à carícia dos ventos amigos. Chega, porém, a noite. As estrelas acendem-se no céu. Um pouco de querosene torna mais inflamável o material da fogueira. E esta levanta, de repente, o seu vermelho lençol de chamas, rasga-o, rompe-o, multiplica-o, e os retalhos desse lençol se estiram, descem, rodopiam e sobrem, estalando, pelo tronco do mamoeiro, que todo se ilumina e arde, e estremece, e retorce as folhas, e lança ao vento, entre os gritos das crianças, os aplausos dos moços, e os sorrisos dos velhos, os pedaços ardentes de si mesmo. É a árvore de São João. Esta é, pela sua vida e pela sua morte, a árvore verdadeiramente cristã. Enfeites não tem senão aqueles que a Natureza lhe deu: as suas folhas, as suas flores, os seus frutos. Não se reparte, no sacrifício, dá-se toda e inteira. Não é artificial, nem morta, entrega-se viva, palpitante, sangrando seiva e resina, como os mártires dos primeiros séculos, sob Nero e Domiciano. Por isso, rendo louvores, a ti, ó árvore de São João, companheira fulgurante da minha infância, saudade luminosa da minha velhice. Glória, portanto, a ti, e à tua árvore, João, santo bárbaro e trovejante, jejuador bravio do deserto. Que se multipliquem em tua honra, em todo o Brasil caboclo, na véspera da tua festa, as fogueiras consagradas. E que as árvores, pavilhão dessas fogueiras, ardam com ruído, lançando para o alto os insetos de fogo das centelhas, e que estas, voando para além das nuvens, encham em teu louvor, de novos astros,a misteriosa imensidade dos céus...
(Edmilson Alberto é escritor)