Só você pode me quebrá esse galho, Pedro. O Zé Luiz, a quem cabia representar o papel, não chegou até agora e a criançada está louca pra receber os presentes das mãos do Papai Noel.? disse-me o tio Léo, apreensivo, passando-me às mãos a barba branca; a bota e o cinto pretos; gorro, blusão e calça vermelhos. E acrescentou: ? Vou alí na sala e volto já pra lhe dar algumas instruções. Vai vestindo tudo isso aí depressa.
Fiz tudo como me pediu. O difícil vou meter os pés naquele par de botas apertadíssimas. Mas, vencida tal etapa, ufa!, por sinal que bem arrochada, arrochadíssima, estava eu irreconhecível naquele traje vermelho de Santa Claus. Tradição que a gente importou dos países de inverno rigoroso. E entrei a ensaiar, baixinho, pra não chamar muita atenção, não, aquele ô, ô, ô, ô, ô, que o bom velhinho costuma entoar nos filmes. E ainda a disfarçar a voz, que parecia não ajudar muito, não, a fim de não ser reconhecido pelas crianças. Tudo pela sublime fantasia daquele Natal. Daquele Natal da Fazenda Dom Pedrito, município de Araçu, Estado de Goiás. Parece-me que foi no final da década de 1980. Ou foi pouco depois? Sei lá. Isso pouco importa, pois o que importa é que eu estava irreconhecível naquela roupa. Já lá se vão mesmo quantos anos?
Enquanto esperava o Tio Léo, sentado na cama de casal, a leitoa que assavam, lá na cozinha externa, desprendia aquele cheiro gostoso de toicinho. A casa era ou é servida por duas cozinhas: a interna e a externa.
Ouvi passos no corredor. Era meu tio que voltava da sala, trazendo nas mãos um sininho de mesa, pra anunciar a minha chegada triunfante, e um saco repleto de presentes. Cada criança tinha seu nome escrito nos embrulhos, para que não houvesse confusão.
A sede da Fazenda Dom Pedrito fica situada no cume de um morrote. Uma estradinha sinuosa de terra batida conduz o automóvel até uma cancela, que se abre para a casa. Casa de paredes brancas, a imitar o estilo colonial brasileiro, toda ela guarnecida de sacadas de ferro forjado.
Meu tio ministrou-me as seguintes instruções naquela noite clara. Que eu saltasse a sacada do seu quarto, sacada que, naquele ponto da habitação, era bem baixa ou rente ao chão, eis ser aquela uma construção em desníveis, descesse a suave encosta do morrote. E então me dirigisse, rompendo um mandiocal, a um determinado ponto, não me lembro mais qual, não muito distante da cancela, onde me depararia com um peão, segurando as rédeas de um cavalo. Fiz tudo como me indicou.
Sim, peão segurando as rédeas de um cavalo, porque era pra eu aparecer montado, montadíssimo, se aquela montaria concordasse em me aceitar no arreio. Era enfim pra eu representar o papel de um Noel-Peão. Se é que já houve antes um Noel-Peão nos Natais da roça.
Mas o cavalo, mas o cavalo, por mais eu tentasse montar nele, socando o pé no estribo, com aquela roupa estranha, refugava, esquivando-se, esquivando-se, relinchando. O animal devia pensar: “eu não vou deixar essa coisa esquisita aí montar em mim, não. De jeito nenhum”.
Não havendo como me apresentar montado, fui andando, anunciando a minha chegada com um ruidoso ô, ô, ô, ô, ô, e badalando aquele sininho de metal cromado.
A criançada vibrou. Quase mesmo em êxtase. O cavalo, que deixei pra lá, parecia sorrir mais ainda. Logo a farândola mirím se aproximou correndo de mim, agarrando-me daqui, agarrando-me dalí, com os olhos vidrados no saco de presentes.
Mal pude subir a escada e ter acesso à sala de estar, porque aquela meninada me detinha. Mal pude me mexer, totalmente cercado, sitiado, impedido por aqueles bracinhos ansiosos. Por aquelas “inquietas larvazinhas de alma humana, Misteriosos destinos em semente”, diz o poeta Raul de Leoni.
Tia Zuzú e seu Doríval Roriz, vulgo Dorí, sogro do tio Léo, foram dos que mais se alegraram com aquela encenação toda.
Foi de fato uma noite vibrante de Natal. Noite vibrante que, para mim, como velho Noel, findou quando distribuí os presentes e falei:
Preciso ir embora depressa, meninos. Outras crianças me esperam na fazenda do 'seu' Ubirajara Caiado, que fica aqui ao lado.
Um menininho quis me acompanhar e auxiliar, mas o tio Léo o deteve.
E assim encerro aqui esta narrativa de Natal. Nem sei mais quanto tempo faz.
(Pedro Nolasco de Araujo, mestre em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, especialização em Direito Constitucional, sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, sócio-correspondente da Academia Belavistense de Letras, Artes e Ciências, diplomado pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra)