A citação e o cavalo
Redação DM
Publicado em 12 de setembro de 2018 às 00:31 | Atualizado há 7 anos
Parece que até já contei este causo aqui, mas valerá para quem não leu.
No ano de 1988, vesperando a instalação do Tocantins, eu exercia a judicatura em Taguatinga, no então nordeste de Goiás, hoje sudeste do Tocantins.
Cidadezinha pacata, de gente conhecida, pois ali eu passava minhas férias de ginasiano, na casa de tio Dirceu, na companhia de colegas, como Tonico, Natacílio, Gercílio e tantos outros que me deixaram boas recordações.
Pois bem, investido na função de juiz, o prefeito Jocy aboletou-me num majestoso casarão construído em 1937 que ficava na praçona da matriz, vis-a-vis com a pensão de Celuta, onde fiquei uns dias até arrumarem a casa.
E, afeito a andar misturado com o povo, logo tratei de despojar-me do terno e da gravata, passando a usar uma beca de cetim apenas nas audiências, pois o calor medonho não recomendava senão a manga de camisa, ainda mais que não era raro faltar água para as serventias, obrigando-me a juntar-me aos advogados Tonico, Saulo, Soares e outros que se dirigiam ao Salobro todas as tardes para o gelado banho no corguinho gorgolejante que cortava uma roça de pasto, não sem antes passar no boteco de Dera ou no de Coló e Bily para “fechar ao corpo” com uma pinguinha da terra.
Assim, misturavam-se as amizades, sem, no entanto, chegar até ao Fórum, pois o povo sabia que na hora de ser juiz não havia amizade nem compadragens para empatar uma decisão justa ou inibir o juiz de decidir.
Havia dois oficiais de justiça, Tió e Salviano: Tio, meio branquelo cor de cuia, vivia cheio de mesuras, clamando que o dinheiro andava vasqueiro, que precisava de uma emendazinha nos salários, pois a carestia campeava e o salário acabava, mas o mês continuava, que isto, que aquilo, e cumpria mais as diligências na rua, enquanto Salviano, chegado a uma cor retinta, embora com seus mais de sessentanos, era mais diligente e preferia intimar e citar na zona rural, valendo-se de um cavalo que ele zelava no seu sitiozinho na Capeba, ali nos arrabaldes da rua. Um veículo era mais que luxo naquela pobreza de comarca.
De início, estranhei quando ele me pediu para interferir junto ao Tribunal para comprar um burro ou uma mula para o Fórum. Depois é que fui entender: eram mais resistentes para as penosas diligências rurais.
Um dia, Salviano foi incumbido de citar um camarada que morava num lugarejo por nome Mosquito, já nos limites do Combinado, a coisa de quinze léguas da sede do Juízo.
No dia da audiência, tudo pronto no Fórum, José Carlos Carneiro, o Promotor de Justiça, devidamente intimado, e não vendo sinal do réu, chamei Salviano:
– Cadê o homem, Salviano? Ele foi citado?
– Nhor não, dotô, mas tá tudo certificado aí no processo.
Abri os autos, folheei e encontrei o motivo. Estava lá escrito: “Certifico e dou fé que deixei de citar o réu porque o cavalo cansou”.
E arrematou, girando na mão a aba do chapéu de massa, com um ar de mofa:
– Bem que avisei mode comprá um burro…
Estava explicado.
Tive, por vezes, de adotar decisões salomônicas.
Um dia, chega-me na porta de casa uma mulherzinha que morava lá no Setor Santa Maria, por nome Sebastiana (se não me engano), com um menininho catarrento escanchado na cintura, já ditando imposições:
– “Seo” dotô, vim aqui pra mode o sinhô mandá prendê meu marido, qui tá lá em casa com o rabo cheio de pinga e inté me bateu, e vendeu a feira que fiz pra beber. Tô escalavrada, arranhada dele me espanncá.
E despejou mais um bando de coisas pra sujar ainda mais a ficha do companheiro.
– Quem é seu marido, dona?
– É Domingo Chorão, e tá lá em casa como o não-dei-que-diga!
Mandei chamar o sargento França, delegado de polícia, que veio na mesma hora, e falei pra ele recolher Domingos até passar a pinga. E ele cumpriu a ordem na mesma da hora, não sem antes falar, com ar de mofa:
– Se o senhor for mandar prender marido que mulher denuncia, vai ficar é doido, pois esse povinho de ponta-de-rua vivia aqui atucanando o doutor Abreu, que era juiz antes do senhor.
Dito e feito: no finzinho da tarde, a claridade entre lobo e cachorro, uma chuvinha renitente de molhar tolo caía, chega a mulher com o menino remelento na cacunda e, toda sem jeito, e pede:
– Dotô, mande soltar meu marido! É o pai de meus fio.
– Mas a senhora não veio hoje de manhã dar queixa dele? – indaguei.
Ela, desconcertada, e, descendo o menino da cintura pra poder gesticular melhor sua tentativa de convencer-me, implorou:
– Na verdade, dotô, a errada foi ieu, que num sube chegar nele e atanazei ele tanto, que se eu fosse ele, tinha batido era mais. A culpada foi eu, dotô!
Mandei chamar o sargento França, e que trouxesse também Domingos Chorão.
Daí a minutos chega ela com o preso, que foi logo pegando o filho, que estava agarrado na barra da saia da mãe, quando eu decidi, ali mesmo na porta da rua:
– França, solta o Domingo e leva pro lugar dele a Sebastiana, pois ela acabou de confessar que é a culpada.
E deixei a delatora uns dois dias na cadeia, e mandando até levar comida lá de cada pra ela durante sua reclusãozinha.
Dali em vante, ninguém mais foi atrás do juiz pra mandar prender o marido. E quando alguma mulher ensaiava de dar queixa por ciumada besta, recebia a recomendação:
– Vai não, Fulana, que esse juiz é doido! Vai acabar é te prendeno, muié!
Nunca mais, enquanto lá estive, marido foi pra cadeia por queixa semelhante. Tive que cortar o mal pela raiz, para evitar outros casos.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])