A democracia tupiniquim e o voto obrigatório
Diário da Manhã
Publicado em 29 de janeiro de 2018 às 23:21 | Atualizado há 7 anos
Um dos grandes paradoxos da conturbada política nacional, nos remete ao incansável debate sobre nossa democracia e a obrigatoriedade do voto. Um dos princípios elementares da democracia, consiste exatamente, entre outros aspectos, no exercício pleno da cidadania e o direito ao voto – uma conquista histórica – e não uma obrigação. O dever vem da consciência, a imposição da resistência. Sujeito a punição e penalidades legais por parte do Estado para quem não o faz. Se o poder emana do povo, o voto deveria ser necessariamente, livre e consciente, o que edifica a mudança e consolidada a liberdade e o Estado de direito.
Esse importantíssimo ato político e expressão popular, pautado no exercício decorrente de plena consciência cívica e política do eleitor, convicto da grande responsabilidade e da importância do voto e, portanto, de votar. Um instrumento legítimo de transformação social e da penosa realidade moral brasileira, na incansável busca por mudanças, inclusão e justiça equânime. Platão afirmou que, “não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam”.
A conquista do sufrágio universal foi o revide da sociedade amordaçada, opondo-se declaradamente contra os desmandos de eviternos tiranos no poder e no trato com a coisa pública; contra a opressão de déspotas históricos, perdulários e a convicção de que os sonhos quando sonhados juntos, tornam-se realidade! Que o suor, as lágrimas, o sangue vertido por chicotes cortantes e baionetas insanas, calaram ditaduras ferrenhas e sanguinárias. O incansável sonho de exercer o sagrado direito do voto livre e uma democracia sólida, foi um longo e árduo caminho nesta importante vitória, espinhosa e dolorosa.
Desde os primórdios políticos do país, brasileiros abastados ou não, vem tentando de alguma forma, participar do processo e das decisões políticas, que é a base do funcionamento da nossa sociedade. Serem ouvidos, manifestarem-se livremente, impulsionados por um descontentamento latente. Disse o filósofo grego Aristóteles, “todo homem é um animal político” e Renato Russo em Sereníssima, “sou um animal sentimental”.
Os primeiros passos na construção da democracia e do voto no Brasil, começaram ainda no Período Colonial (1530 – 1822) quando os moradores em 1532, votaram na eleição para a Câmara Municipal de São Vicente, primeira vila fundada pela colonização portuguesa. Até 1821 apenas eram permitido votar os homens livres – mesmo analfabetos -, voto aberto e apenas na esfera municipal. Ainda não existiam partidos políticos e as fraudes eleitorais eram comuns.
No Período Imperial (1822 – 1889), veio a primeira Constituição do Brasil (1824), outorgada por D. Pedro I, centralizadora e autoritária. Conhecida popularmente como a “Constituição da Mandioca”, que estabelecia o voto censitário – só teria direito ao sufrágio quem possuísse determinada renda – e obviamente, os abastados. Neste caso, com no mínimo 150 alqueires de área plantada de mandioca. Sendo possível eleger indiretamente para a Câmara dos Deputados, Senado e Assembleias Provinciais, e diretamente para Câmaras Municipais e Juízes de Paz. Um processo eleitoral extremamente frágil, excludente, fraudulento – como o voto por procuração e título de eleitor falso -, violento e batizado como “eleições do cacete”.
Em 15 de novembro de 1889 com a Proclamação da República, a família real foi deposta e o chefe do Executivo federal passou a ser escolhido entre a população. Com a Constituição de 1891 – a segunda do Brasil e a primeira da República -, foi adotado o presidencialismo como regime político e Prudente de Morais (1894 – 1898) foi eleito o primeiro presidente civil – seus antecessores os marechais Deodoro da Fonseca (1889 – 1891) e Floriano Peixoto (1891 – 1894), não haviam sido eleitos e eram militares. A possibilidade de exercer o direito de escolher o presidente foi indiscutivelmente um grande avanço. O que ainda era evidente e lamentável, que as decisões continuavam concentradas nas mãos de uma minoria, excluindo do direito ao voto, os menores de 21 anos, mulheres, analfabetos, mendigos, soldados rasos, indígenas e os clérigos.
A principal característica do sistema eleitoral durante a República Velha, foi a vergonhosa manutenção dos privilégios e o chamado voto de cabresto. O coronelismo, outra característica marcante, típico da figura política nacional, escara de um país rural e provinciano, consolidou o modelo social e eleitoral excludente. Fazendo uso de seu poder econômico e da violência recorrente em seus “currais eleitorais” e elegiam-se o que melhor atendesse aos seus interesses. Domínio absoluto dos poderosos coronéis, chucros e fomentadores das fraudes eleitorais, como afirmou Victor Nunes Leal, “inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos, ausentes compareciam” e muito mais do gênero.
Com o fim da República Velha – “Revolução de 30” – e a chegada de Vargas ao poder, iniciou-se a chamada “Era Vargas” (1930 – 1945) e uma série de “mudanças” políticas, econômicas, sociais e eleitorais. A criação do Código Eleitoral em 1932 e a conquista do voto feminino, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE – e os Tribunais Regionais Eleitorais – TRE -, além da instituição do voto secreto, colocando fim ao constrangedor voto aberto e de cabresto. Com o golpe de Vargas nele mesmo e a implantação do Estado Novo em 1937, veio também a chamada “Constituição Polaca” com características fascistas e a tenra democracia brasileira e suas frágeis conquistas, malograram.
Em 1945 com a deposição e a queda da ditadura varguista, deu-se início ao processo de redemocratização com a promulgação de uma nova Carta Constitucional dos Estados Unidos do Brasil em 1946 – Governo Dutra (1946 – 1951) -, consagrando as liberdades expressas na Constituição de 1934, que haviam sido retiradas em 1937, com a implantação do imoral Estado Novo.
Nossa história está repleta de golpes obscenos e conspirações ardilosas, com status de vultos cívicos, com direito a datas comemorativas e feriados nacionais – Golpe da Maioridade, Proclamação da República, “Revolução de 30”, Golpe Militar de 64 e o de Temer em 2016 – e os canalhas que insistem em comandar o país, macularam a democracia brasileira e o direito ao voto, mais uma vez. Diante dos ultrajantes Atos Institucionais, das baionetas, da truculência e sob ruidosos aplausos dos indigentes intelectuais de 1964. Mergulhando o país e os direitos dos cidadãos, numa noite sangrenta que duraria 21 anos.
A corrupção – que infelizmente nos é tão familiar e atual -, a violência, a censura que marcaram os “Anos de Chumbo”, foram uma afronta a razoabilidade, a inteligência, a ética, a liberdade e a democracia! Transfazendo necessidades sociais históricas e reprimidas, em negócios escusos e pessoais. “Prefiro cheiro de cavalo do que o cheiro de povo”, afirmou o General João Figueiredo (1979 – 1985), último presidente do regime covarde e opressor. O Estado e o uso da máquina pública, financiando – o “pão e circo” – a imoralidade política, sob o manto da Segurança Nacional e da moralidade. A “noite” foi longa, fria e nas alcovas tramas sórdidas.
O movimento popular, que mobilizou anseios e esperanças dos incansáveis brasileiros nas “Diretas Já”, em defesa da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no. 5 de 2 de março de 1983, Dante de Oliveira, infelizmente, não foi aprovada no Congresso Nacional. Frustrando o sonho de muitos bravos cidadãos conscientes, de novamente, exercerem o nobre direito de votarem para presidente. O que só aconteceria na eleição presidencial de 1989, direito novamente assegurado com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e o sufrágio universal. O voto livre, secreto e estendido a todos maiores de 16 anos, entretanto, obrigatório.
A obrigatoriedade do voto, além do paradoxo com a democracia, fomenta os piores eleitores e candidatos que existem, parvos e pessimistas. São perigosos e prejudiciais ao processo democrático. Se é um direito votar, deveria ser também o de não votar, democracia é isso. Esta imposição jurídica e eleitoral, fabrica eleitores apáticos, letárgicos, encabrestados pela indigência política e intelectual, que votam pela obrigação legal – se não, de alguma forma, serão punidos pelo Estado democrático e de direito – e não, pela consciência crítica e política. Contribuindo para a eleição de candidatos cada vez piores, porque quando se opta por não votar, mesmo sendo um direito, escancara-se as porteiras, para qualquer um chegar ao poder e governar em nome de todos!
Entendo que quanto pior for o nível social e intelectual dos eleitores, piores também, será o nível dos representantes, como infelizmente tem sido recorrente. Portanto, democracia não é transformar corruptos em políticos, nem parvoíce em poder, acredito que isto tenha outro nome.
Como cidadãos e eleitores conscientes, temos o dever moral, o direito constitucional de termos acesso irrestrito as contas públicas, bem como, acompanhar o trabalho de nossos representantes, em todas as esferas e níveis. Dados oficiais comprovam os vultosos gastos públicos com Publicidade e Propaganda e o quanto é possível unir o “útil ao agradável”. Os únicos funcionários – os governantes – que ganham e muitíssimo bem para administrarem e ainda precisam fazer propaganda do que fazem. Como se não fizessem mais que a obrigação. Será por quê? “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”, Goebbels e para alguns eleitores que só votam porque é obrigatório, isso é um perigo! Voto é consciência e não castigo.
Se o povo tem o governo que merece, o cenário político brasileiro é em parte, reflexo de seu povo e eleitores. O historiador Leandro Karnal, afirma que não existe governo ético em um país de pessoas desonestas ou vice-versa. Quanto maior for a permanência de certos indivíduos de moral e conduta duvidosa no poder, maiores serão os tombos e os rombos, as “cachoeiras” de escândalos lesivos a nação, os “Al Capones” infiltrados e tramando contra a democracia, os desvios, os desmandos de eternos coronéis e seus currais eleitorais. Que as próximas eleições, tragam-nos algo em que possamos confiar, convictos no poder transformador do voto, de mudanças, renovações e as transformações que os massacrados trabalhadores deste país merecem. A insistente sociedade brasileira, está como Tereza Batista em Jorge Amado, ”cansada de guerra”!
O fim do voto obrigatório, emergirá um perfil de eleitor diferenciado. Politizado, consciente e otimista. Quanto mais esclarecido o eleitor, melhor será o nível dos candidatos. A obrigatoriedade do voto, juntamente com aqueles que preferem abrirem mão do direito, por também ser um direito constitucional que o assegure, é que acabam por darem carta branca a qualquer patife, cretino e inimigo do povo. Talvez boa parte destes adeptos, diante do colapso nacional e a catarse intelectual de alguns, aos zurros, nas redes sociais e nas ruas, clamam um déjà vu – ditadura militar – em uma explícita amnésia histórica!
(Marcos Manoel Ferreira, professor, pedagogo, historiador, escritor, pós-graduando em Docência do Ensino Superior. marcosmanoelhistoriageral@hotmail.com e www.vozesdasenzala.blogspot.com.br)