Opinião

A experiência do dr. Oliver Price

Redação DM

Publicado em 14 de março de 2016 às 23:45 | Atualizado há 9 anos

Num grande hospital de Los Angeles, o famoso médico Oliver Price autorizou à enfermeira Mary Lee suspendesse os medicamentos que estavam sendo aplicados num recém-nascido portador de enfermidade incurável, explicando que o tratamento estava “apenas prolongando o sofrimento da criança”, uma vez que ela se encontrava, irremediavelmente, “condenada pela ciência”.
(Assim procedem alguns médicos que acreditam somente nos recursos dos homens, como se as suas conclusões fossem infalíveis, como se eles nunca pudessem se equivocar e, findas as alternativas da ciência, são incapazes de lembrar que, acima deles e de todos os seus conhecimentos, há Deus que a tudo vê, rege e sabe).
A enfermeira, no entanto, sentiu imensa piedade pelo pequetito e, pela vez primeira, duvidou da capacidade do cientista, mas obedeceu a ordem, enquanto ousava fazer-lhe um pedido: “Doutor, uma vez que a criança está mesmo desenganada, permita-me ficar com ela?” O Doutor Oliver foi acometido de súbita indignação. Pressupôs que a abnegada colaboradora estivesse duvidando de sua competência, e falou um tanto agastado, ferido no orgulho: “Acha, então, que ele vai escapar?” “Quem sou eu doutor para desdizer o que o senhor disse? Mas… é que estou profundamente apegada a esta criancinha que me disponho a levá-la para casa e responsabilizar-me por ela. Já que fora abandonada pela mãe indigente, eu me sentiria imensamente infeliz se não tivesse alguém, pelo menos, para fechar-lhe os olhinhos.” Todavia, a enfermeira sentiu um impulso de coragem e não escondeu a sua fé: “Quem sabe também, doutor, atendendo às minhas preces e a veemência do meu amor, Jesus resolve salvar o pequenino, não é mesmo? Penso que, quando terminam os recursos dos homens, começam os de Deus”… Diante dessa “ingênua” esperança numa “ciência utópica”, vulgarmente acalentada pelas pessoas “destituídas de entendimento”, ou compreensivelmente alucinadas pelos excessos do amor, o médico esboçou desdenhoso sorriso, demonstrando, na sua aparente superioridade, o quanto achava ridícula a atitude da mulher e o quanto considerava inútil qualquer esforço dela, mas terminou aprovando o pedido, para grande júbilo de Mary Lee.
O recém-nato tinha a cabeça desmesuradamente grande, disforme, o corpinho era tão excessivamente atrofiado que parecia – numa comparação apressada – ser a complementação do pescoço, em contraste à esfera avolumada do crânio; sofria, às vezes, estranhas convulsões e, conforme os diagnósticos, não tinha, mesmo, qualquer possibilidade de sobreviver.
Mary levou o pequeno e o internou, às suas expensas próprias, noutro hospital, onde o submeteu a longos tratamentos especializados. Quando a enfermeira notou que não podia mais pagar as diárias hospitalares, levou para casa o pequenino e, habituada aos remédios utilizados na clínica do dr. Oliver Price, prosseguiu a aplicar-lhe o tratamento, inspirada na experiência e na fé que lhe serviam de roteiro. Quando tinha que ir para o serviço, deixava as providências prescritas, a fim de que sua mãe cuidasse da criança até que ela voltasse. Diante de qualquer dúvida quanto às reações do estranho enfermo, no hospital onde servia indagava a algum médico, de maneira discreta, como se pretendesse orientar-se quanto ao problema de alguma criança internada ali mesmo, naquele nosocômio. E assim, com muito amor e paciência, prosseguia na esperança de um dia ver completamente curada aquela criaturinha que ela adorava ternamente, como se seu filho fosse.
Um ano se passou e, como não existe melhor bálsamo do que o tempo, o adotivo de Mary Lee, aos poucos, se restabelecia completamente.
O dr. Oliver Price nunca perguntou à enfermeira quanto à criança, pois estava seguro dos seus conhecimentos no intrincado campo da ciência, e acreditou, naquela época mesmo, que o pequeno apenas viveria por mais uns três dias, no máximo. E Mary, receando contrariar o cientista, também nunca mais abordou o assunto com ele.
Mais um ano transcorreu no calendário do tempo e o pequeno Richard Lee estava restabelecido, por completo. Só que a sua compleição física permanecia invulgar: tinha uma cabeça muito grande a bambolear sobre um corpo raquítico e disforme.
Alguns anos mais e o menino estava ingressando na escola.
Ele era uma nota destoante no meio da meninada. Sofria calado o peso de apelidos inusitados e pitorescos. Sua cabeça grande dançava sobre aquele par de ombros magros e atrofiados. Por isso, era motivo de galhofa e maldades por parte dos outros meninos. No entanto, aos poucos, o garoto surpreendia as suas professoras pela excelente inteligência de que era, naquela idade, fartamente dotado. O que lhe faltava na argamassa física, era-lhe recompensado no cérebro descomunal. Tudo aprendia com tamanha facilidade que parecia ter, no laboratório mental, um gravador instalado.
O dr. Oliver Price, com quem Mary trabalhava ao longo de muitos anos, realmente havia se esquecido da criança que dera à enfermeira, pois desde aquele dia nunca mais perguntou por ela. Pensava-a morta naqueles dias mesmos em que mandara suspender os medicamentos que lhe estavam sendo aplicados.
Mais 15 anos transcorrem na roda do tempo e os Estados Unidos escutavam as novidades da ciência, explicadas e ministradas por um profundo pesquisador de nome Richard Lee, que executava curas magníficas no vasto campo da medicina.
Mary Lee havia se aposentado, mas um dia foi chamada, urgentemente, ao hospital onde trabalhara durante toda a sua vida. Era o dr. Oliver Price que estava doente, acometido de desconhecida enfermidade que os seus colegas não conseguiam debelar. O veterano médico queria que a sua antiga enfermeira lhe desse assistência, dizendo ser ela a única indicada a ajudá-lo naquele transe tão difícil, em virtude de sua vasta experiência e da afinidade profissional que a ambos interligava. Mary se prontificou a voltar para o hospital unicamente para atender ao antigo patrão, que muito confiava nos seus serviços.
Um dia conversavam e, pela primeira vez, o dr. Oliver se interessou pela vida particular da velha enfermeira: “Só agora, Mary, que me encontro relegado a este leito que me obriga a pensar muito para preencher o vazio das horas, é que me veio à lembrança uma grande falha minha… Durante 30 anos você trabalhou ao meu lado e nunca demonstrei atenção pela sua vida particular. Hoje, porém, que estou um pouco mais disposto, pude observar mais atentamente o seu desvelo e a sua abnegação. Você sempre foi extremamente dedicada ao trabalho e, como enfermeira, desempenhou o seu papel como nenhuma outra. Então, deu-me vontade de saber alguma coisa a respeito de sua vida; não se opõe?” Mary sorriu e disse: “Claro que não, doutor… A nossa duradoura convivência profissional já nos autoriza a entrar na intimidade um do outro, não é mesmo?” “Sim. Concordou o médico. Pelo que me lembro, você vivia em companhia de sua mãe… Como vai ela?” “Já é falecida, doutor… Faz cinco anos.” “Você então se casou, e quem é o seu esposo?” “Não, doutor, nunca me casei…” “Estranho, eu pensava que você fosse casada…” Novamente sorrindo, enquanto preparava uma injeção, a veterana indaga: “O que o fazia pensar que eu fosse casada?” “Pareceu-me ouvi-la dizer não me lembro a quem, aqui no hospital, qualquer coisa com respeito a seu filho.” E ela? “Realmente, doutor, eu tenho um filho…” E o médico exclamando com alegria: “Ora, e você nem para me dizer?” Mary voltou-se para ele, fitou-o nos olhos e, com bondade, falou-lhe: “Era preciso falar-lhe, doutor, se foi o senhor quem me deu o filho?” O ilustre paciente quase sofreu uma síncope. “Eu?!” A enfermeira gargalhou, mas não deixou de confirmar: “Sim. O senhor mesmo!” “Não brinque Mary! Assim, você acaba me comprometendo!” Aplicou-lhe a injeção, enquanto dizia, sorrindo: “O que posso fazer doutor… É a verdade.” Pediu licença e se retirou do apartamento, conduzindo a bandeja de medicamentos, deixando a sós o dr. Price, que ficou em profundas meditações. Forçou uma regressão de memória, procurando recordar todos os momentos em que esteve em companhia de Mary, até que pôde relembrar aquele recuado dia em que deu à enfermeira uma criança enjeitada e doente, atrofiada e irremediavelmente condenada. “Só se ela se referia àquela criancinha que, por certo, não sobreviveu” – concluiu o doutor, terminando por sossegar um pouco. Na condição de médico e cientista, Oliver Price percebeu que, por sua vez, estava realmente condenado à fatalidade, uma vez que a moléstia que o incomodava era irreversível porquanto desconhecida. Deixou se dominar por intensa amargura e a tristeza profunda apagou de seus olhos qualquer brilho de esperança. Meia hora depois, Mary entra no luxuoso aposento de Price e lhe comunica: “Doutor, eu trouxe um médico para cuidar do seu caso… Com a ajuda dele e de Deus, estou segura de que o senhor se recuperará.” “Quem é o médico, Mary”? E ela: “O dr. Richard Lee.” “Richard Lee?” Exclamou Oliver. “Mas, Mary!” O dr. Richard Lee, aqui, no meu hospital? O médico que a América toda aplaude? Ele, assoberbado como é, ainda conseguiu um tempo para vir ter comigo e cuidar do meu caso? Nem posso acreditar… A enfermeira não sabia que o dr. Price admirava tanto Richard e falou: “Mas, o que tem Richard mais do que os outros médicos para entusiasmá-lo tanto, doutor?” E Oliver: “Então você não sabe?” Lee é um dos mais profundos cientistas que há, no momento! Tem realizado curas maravilhosas! Tem sido a solução para as doenças mais complicadas! Enfermidades, de origem desconhecida, são a sua especialidade! E Mary pensou: “Nossa!E eu não sabia disso!…” “Onde está ele Mary?” “Na sala dos médicos, conversando com os colegas. “Posso chamá-lo?” “Mas é claro!” A assistente saiu, voltando pouco depois com Richard que, efusivamente, abraçou o dr. Price, dizendo-lhe: “É uma alegria conhecê-lo, doutor. Minha mãe fala a seu respeito com tanto carinho que o senhor passou a representar muito para mim…” Oliver Price não continha a sua emoção: “Obrigado, doutor”…” Tinha a voz embargada, mas nutria imensa esperança naquele médico que o fitava, falando ainda: “Tratarei do seu caso com um carinho muito especial.. Com a bênção de Deus haveremos todos de vê-lo completamente restabelecido…” E o dr. Price: “Não compreendo, Dr. Richard, a razão de tamanha gentileza de sua parte…” O jovem cientista sorriu e disse: “Além de ser uma obrigação profissional, minha mãe ficará muito feliz se o vir curado…” E Price: “O doutor me perdoe, mas… Não me lembro de haver conhecido a sua mãe, que parece muito me prezar…” Mary sorriu com bondade e, para esclarecer ao filho que fitava indagador, e também para explicar tudo ao dr. Price, falou, dirigindo-se a Richard: “Eu nunca disse ao dr. Price que você é o meu filho, aquele mesmo que ele me deu, há 35 anos…” Foi então que o doente voltou os olhos mais atentos para o recém-chegado. Era um homem claro, cabelos castanhos, de cabeça muito grande meio pendida para direita, de corpo raquítico e olhos muito brilhantes. Relembrou aqueles idos e reviu, nas telas da memória, aquele entezinho monstruoso que dera a Mary, e do qual se esquecera logo, por supô-lo morto. “Então, Mary, ele…” E antes que o enfermo dissesse algo mais, a enfermeira completou: “Sim, doutor… Ele escapou, graças à bondade do Grande Pai que me atendeu as preces insistentes.” Price voltou a fitar Richard que, indiferente à conversa de ambos, já o examinava profundamente, concentrado nos registos do estetoscópio que lhe instalara no peito. O honrado doente, fitando o colega ilustre, pensava: “E eu havia mandado suspender o tratamento… Eu não queria que a criança sofresse e autorizei apressassem o seu desenlace… Penso, agora, que a eutanásia é um erro que a ciência deve corrigir…” Quando Richard retirou o estetoscópio, Price falou: “Normal, não, doutor?” Ao que o jovem cientista respondeu: “Para os médicos e os instrumentos da tecnologia, sim. Mas há um detalhe imperceptível, caro doutor, que procede da alma”… “Não compreendo doutor”, disse Price. “Não se preocupe, porém… O senhor ficará bom, se voltar a trabalhar inspirado nas convicções novas que esta doença lhe inspirou…” Mandou Mary providenciar uma série de exames especiais, cuidou do enfermo com zelo e carinho e, ao termo de um mês, o dr. Oliver estava bom, duas semanas depois voltava ao trabalho, explicando a cura que recebera do dr. Richard: “Ele é extraordinário. Parece ter um sexto sentido…”
Quando o velho dr. Oliver Price retornou às atividades profissionais, houve um instante em que, estando em meio à intensa labuta, uma enfermeira veio lhe perguntar: “Doutor, conforme o diagnóstico do senhor e do dr. Vincent, não há, mesmo, cura para a criança Cristine… Suspende a medicação dela ou não?” O dr. Oliver sente um tremor dentro d’alma, recorda o semblante calmo do dr. Richard e, preocupado, respondeu à servidora: “Claro que não! Não suspenda… A eutanásia é um erro que a ciência precisa corrigir…”
Os minutos finais de um agonizante são portadores de experiências preciosíssimas para o seu espírito. Ele revive em fração de segundos todos os instantes vividos entre os homens e pode, por isso, arrepender-se dos erros que cometeu; consegue, mesmo, substituir qualquer sentimento de rancor por sentimentos de bondade e perdão; naquela retrospectiva de experiências faz reparos espirituais e dissipa dúvidas; chega mesmo a reconciliar-se com adversários do outro plano de vida, como aliás nos ensina André Luiz, no seu livro “Sexo e Destino”. Não podemos medir a extensão da importância que representa, para o moribundo, aquele sagrado instante final que a Eutanásia iria atrapalhar, apagando aquela oportunidade importante de valiosas reparações.
Depois, quem pode conhecer o destino de um agonizante, desconhecendo o que Deus lhe reservou? Muitas vezes, alguém pode aproximar-se bastante da morte para depois reerguer-se e viver realmente, com mais sobriedade e com mais exatidão.
Quando o anjo da morte se aproxima de alguém, às vezes o faz para doar-lhe a verdadeira mensagem da vida.
Penso que o dr. Oliver Price chegou mesmo à conclusão exata: a eutanásia é um erro que a ciência precisa corrigir.
Não conhecemos, sequer, o nosso destino. Iremos, acaso, conhecer o destino dos outros?

(Iron Junqueira é escritor)

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