A favela e sua origem histórica
Diário da Manhã
Publicado em 28 de junho de 2017 às 01:20 | Atualizado há 8 anos
Até virar conjunto de habitações populares toscamente construídas, em locais inadequados, com sentido pejorativo, em cidades do Brasil afora, o conceito da palavra “favela”, vem de uma “árvore” com esse nome, também chamada fava e faveleiro, característica da caatinga nordestina, sobretudo baiana, de forte proveito medicinal que, segundo Mestre Lua de Bobó (baiano), era utilizada para “fechar o corpo” e outras serventias da medicina popular. Em ciência, Jatropha pyllacantha, família das euforbiáceas, é rica em madeira, frutos comestíveis e “sementes” saborosas de fazer farinha de que me nutrir em minha infância rude nos sertões de minha imorredoura saudade.
O termo “favela” vem também de um morro descrito pelo notável escritor Euclides da Cunha, no livro Os Sertões, onde, de tão abundante, deu nome ao “Morro da Favela” no qual se instalaram os soldados durante a Guerra de Canudos. Ao voltarem ao Rio de Janeiro, num momento que não recebiam soldo, os soldados pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecer com suas famílias no alto de um outro morro, agora chamado da “Providência”, onde, com outros desabrigados, passaram a chamá-lo “morro da Favela”, transferindo o nome do morro original de Canudos, como diz Houaiss, por lembrança ou por alguma semelhança que encontraram; notando-se que os sobreviventes de Canudos não se destinaram apenas ao morro acima citado.
Foi assim que o termo “favela” se propagou-se como “conjunto de habitações populares” e outras denominações ruins, características dos mais pobres, especialmente negros, começadas no Rio de janeiro no início do século 20, de onde, além de se ampliar e se espalhar por outras cidades do país e do estrangeiro, se variaram em Bairro-da-Lata, em Portugal; Caniço, em Moçambique; Musseque, em Angola; Callampas, no Chile; Villas, na Argentina; Cantegriles, no Uruguai; Barradas, no Peru, Cidades Perdidas, no México; Os Pueblos Piratas, na Colômbia, ou seja, qual for o termo utilizado para denominar áreas de favelas e correlatos; são fruto de um processo de urbanização da América Latina, aflorado por injusta explosão demográfica ou iníquo êxodo rural, de todo modo evidenciando exclusão social, tendo como causa básica o racismo e a má distribuição da riqueza nacional, fenômenos comum nas cidades brasileiras. Aqui em Mineiros existe uma, irônica, chamada “Vila da Paz”.
As mais famosas favelas estão no Rio de Janeiro, onde contrastam fortemente com os prédios e mansões da elite da Zona Sul, convivendo lado-a-lado e configurando paisagens que desafiam a lógica social, afrontando e ferindo a dignidade humana. A Rocinha, no Rio, é frequentemente citada como a maior favela da América Latina, o que não corresponde a última verdade, de que se refere o filósofo Camus, já que em Caracas, capital venezuelana, a favela de Petore tem dimensões três vezes superior. Em quantidade, porém, ninguém ganha do Brasil, estando só em São Paulo, conforme estimativas recentes, 2.018 favelas cadastradas, nas quais estão aproximadamente 1.160.516 habitantes, 10% da população da cidade, sem esquecer a alta taxa de “favelização” presente em Fortaleza, Recife, Belo Horizonte e outras cidades, inclusive planejadas, como Brasília, ora figurando, segundo Relatório da ONU, entre as cidades mais desiguais do mundo, com suas incríveis misérias. Vejam que 10 milhões de pessoas no Brasil, na última década, deixaram de viver em condições “faveladas”!
É de se imaginar a perversidade dessas “favelas”, gerando desigualdades absurdas, contra, mormente, os negros e seus descendentes. O Rio de Janeiro significa bem esses desmandos de cidade dividida em dois pólos que não se comunicam, consoante o livro “Cidade Partida”, de Zuenir Ventura (1994), contrária a “Cidade Cerzida” de Aldair Rocha, já apresentando o Rio subdividido em áreas opostas, costuradas, o morro e o asfalto, em “relações constantes”. Essas “favelas”, como se vê, mostram a “Cidade Normatizada”, contrapondo a “Cidade Anômica” ou sem regra, para não dizer “sem lei”, que cresceu à margem da primeira, analisada pelo historiador José Luis Romero. Eis a cidade “sem fim”, das “favelas”, sempre dividida em duas, a nobre e civilizada, em oposição a outra, negra, pobre, ex-escrava, indecente e suja. Por estranho que pareça, Goiânia é bem isso! O poeta latino Horácio, já nos desmandos ou desregramentos romanos, escreveu: “Est mudus in rebus” (há um limite para todas as coisas).
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU) e da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGG, UBE-GO. Mestre em História Social pela UFG. Secretário da Cultura e Turismo de Mineiros-GO, onde ainda preside o Conselho Superior da FIMES. Autor, dentre outros, dos livros: Racismo à brasileira: raízes históricas, 4. ed., e Quilombos do Brasil Central: violência resistência escrava, 2. ed (martinanojsilva@yahoo.com.br))