A gente morre todo dia no Cais
Diário da Manhã
Publicado em 4 de janeiro de 2018 às 22:30 | Atualizado há 7 anos“O doutor chegou tarde demais,
porque no morro não tem telefone pra chamar, não tem automóvel pra subir, não tem beleza pra se ver. E a gente morre todo dia sem querer morrer”
“Acender as Velas” – samba imortal de Zé Keti, gravado por Nara Leão, Maria Betânia e por Elis Regina, no anos 1960
Diante de tantas atrocidades e injustiças com que nos deparamos diariamente, existe uma tendência humanamente deplorável de nos acostumarmos com o pior, desde, é claro, que esse pior não nos afete diretamente, ou diretamente a quem amamos.
Salvo raríssimas exceções, isso é um fato!
Lamentamos, nos indignamos temporariamente, mas isso não nos tira a alegria do dia a dia nem afeta nossas atividades corriqueiras,e muito menos nos leva a fazer algo em prol de um todo. Sair de nossa zona de conforto? Colocar nossa cara na mídia, para defender uma causa e se arriscar? Nem pensar!
Há uns seis anos, travei uma luta ferrenha com o Sistema Único de Saúde, em detrimento de uma doença a qual meu pai foi acometido. Cheguei a fazer um curso de Técnico em Enfermagem para poder auxiliar melhor nos cuidados com ele. Depois de perambular por vários Cais em busca de atendimento, passar noites em claro com ele, já extremamente fragilizado em cima de uma maca dura e fria, decidi que iria pra porta do Hospital das Clínicas com ele e que não sairia de lá enquanto ele não fosse atendido.
Foram duas noites e dois dias, com ele sentado numa cadeira de rodas de ferro, gélida. Ele implorava pra poder se deitar ao menos no chão, pois cada osso e músculo do seu frágil corpo de 37 kg estava extremamente dolorido e ferido.
Conseguimos! Eu podia ver naqueles olhos verdes, e ainda brilhantes, uma alegria e uma esperança indescritível, quando uma residente viu toda aquela situação e se compadeceu. Foram mais 3 dias, na sala do pronto atendimento deitado numa maca, mas agora tínhamos a esperança de que sairia mais cedo ou mais tarde para um leito no setor de gastroenterologia. E saiu.
Foram anos de tratamento, três pra ser bem especifica. Cada internação durava cerca de seis meses, oito meses. Alimentação enteral, parenteral, sondas, cirurgias, nada foi fácil! Infelizmente não era pra ser, e ele se foi. Sempre querendo viver, nunca desistiu. Sempre se agarrando a cada fio de esperança que lhe era atirado.
Hoje enfrento a mesma luta. Cuido da minha mãe com Alzheimer. Ela não recebe nenhum benefício ou aposentadoria. E como meu salário excede pouquíssima coisa além do que o governo exige por pessoa numa renda familiar, não consigo incluí-la em nenhum programa, nem ao menos para as despesas com medicação. Uma injusta discrepância, haja visto pessoas recebendo até três rendas acumuladas ou uma aposentaria de valor exorbitante.
Foram seis meses de espera por um atendimento com um neurologista , mais de oito meses entre idas a vindas ao Cais do Novo Horizonte, tentando desesperadamente para que esse mesmo médico, dificilmente conseguido, preenchesse os papeis para que eu pudesse tentar, na Farmácia Juarez Barbosa, adquirir um dos remédios mais caras receitado por ele.
A propósito,eu não disse que essa luta vem de uma mulher assalariada, divorciada, mãe de três filhos e que trabalha arduamente pra manter sua família. Se isso tem alguma importância, não sei. É só pra constar que não tenho tempo, carro e dinheiro pra correr atrás disso tudo. Mas, vamos lá…
Com muita relutância o médico preencheu ao papeis. Preencheu errado! Sim, erros cometidos apenas por quem não está interessado no que está fazendo, não está interessado na condição precária da paciente.
Já fui ao Cais inúmeras vezes tentar marcar outra consulta e não consigo, pois a desculpa é de que o sistema está sempre fora do ar. Telefone? Impossível, ninguém atende. A consulta deve ser marcada pessoalmente,não importando se você tem que acordar às 4 da manhã pra não perder o ônibus. Mesmo que pela lei, a consulta tenha que ser disponibilizada em local próximo à residência do paciente. ” Sem internet” – a desculpa perfeita para o descaso.
Com isso, lá se vão os exames que foram duramente conseguidos. Pois a farmácia exige um tempo de no máximo três meses da data final dos resultados. Ou seja, expirou-se o tempo de validade da maioria deles.
Não sabemos se vamos vencer essa luta. È bem possível que não, pois a injustiça é bem maior que nossa força, é maior que nossos poucos recursos, é maior até mesmo que nossa fé. Tudo contribui para que o processo seja demorado, moroso, desgastante, humilhante! Vejo algumas pessoas dando seu “jeitinho” quando se tem um parente ou um amigo na área da saúde, mas, no geral, como é o caso por aqui, a via a ser percorrida é sempre a mais dolorosa.
Se o sistema público pode dificultar, pra que facilitar, não é mesmo? Viva o Brasil que nesse ano tem eleições e copa!!!
(Marcia Almeida, secretária executiva e bacharel em Letras)