A licença, ou como Pianchão conseguiu o que aparentemente era impossível
Redação DM
Publicado em 18 de abril de 2017 às 03:02 | Atualizado há 8 anos
Quem lê Drummond, conhece o João Brandão, que é uma espécie de herói do nosso poeta maior. Naturalmente, o João Brandão é um personagem criado pelo autor itabirano. Meus heróis, salvo aqueles que vivem nas linhas de meus livros , são todos reais: Pedro Boto, Né Velho, Joaquim Cursino, Zé Traíra e uma infinidade de outros. De todos, um se apresenta com mais frequência, apesar de não estar no mundo de minha meninice: é o Pianchão, que conheci e com quem convivi, durante minha permanência em Belo Horizonte como funcionário da Escola Técnica Federal de Minas Gerais O Pianchão já andou povoando minhas crônicas, como hoje.
Apesar de funcionário público (desenhista-projetista do Departamento Nacional de Estradas de Ferro), sempre fez do seu serviço oficial um bico: sua vida era no mato, como topógrafo, abrindo picadas e fazendo medições, serviço que lhe rendia muito mais do que ganhos do governo. Por essa razão, não deixava passar nenhuma oportunidade de se afastar do serviço, fosse de férias, fosse de licença, para passar longas e proveitosas temporadas longe da cidade e em convívio com a natureza, fazendo aquilo de que sem-pre gostou.
Não é de se estranhar que os colegas de serviço que entraram junto com ele já estivessem aposentados quando o Pianchão ainda emplacava os 25 anos de efetivo serviço, faltando mais dez para gozar e poder ficar “per omnia saecula saeculorum” no mato sem precisar vir periodicamente renovar licenças ou requerer férias.
A cada licença para trato de interesses particulares, eram dois anos que distanciavam sua aposentadoria, isto sem se falar em outras licenças, que tudo quanto é espécie de afastamento ele aproveitou.
Pois bem, vinha ele tocando a vida, considerando o serviço público apenas como suporte para uma futura inatividade, que, paradoxalmente, parecia que estava ficando cada vez mais distante, à medida que o tempo passava.
No Departamento Nacional de Estrada de Ferro, onde trabalhava antes de ir para a Escola Técnica Federal de Minas Gerais (onde nos conhecemos), os chefes já o conheciam, e o fato de viver sempre afastado já não causava espécie, de tanto ele aproveitar as brechas legais para pular fora do serviço oficial.
Um dia, com a revolução de 64, quando trocaram todo mundo dos postos de comando no serviço público, foi nomeado um camarada para substituir o benevolente chefe que lhe abonava as pretensões de afastamento. A Revolução pegara o Pianchão no mato, lo¬cando linhas de transmissão.
Quando ele reassumiu, para trabalhar uns poucos dias, apenas para se habilitar a novo afastamento, viu as coisas petecarem pro seu lado: o chefe, colocado ali como uma espécie de interventor, não toleraria isso e ainda tinha outra coisa: sendo de fora, durão, não conhecia ninguém, não devia favores e não tinha rabo preso. E para piorar, o homem, que tinha carta branca, era extremamente correto e incapaz de um ato comprometedor. Tinha tudo para pretejar a situação.
O tempo corria. A licença urgia, pois o Pianchão contratara uma empreitada lá no Nordeste e tinha prazo certo para fazer o serviço, sob pena de pagar pesada multa, além de deixar de ganhar uma dinheirama.
Ele se aventurou a fazer um requerimento, que já sabia de cor, e foi ao homem, que, já sabendo da vida de Pianchão, recebeu-o com quatro pedras na mão, além de lhe passar tremenda descompostura, suficiente para murchar qualquer pretensão. Mas ele não desanimou.
Garantiu para os colegas de serviço que a licença seria concedida e que até já providenciara a viagem para dali a dois dias. Surgiram apostas e casaram dinheiro grosso no consegue-não-consegue, pois muitos viram como o chefe o recebera.
Dito e feito: no outro dia de manhã, para espanto de todos, chegou Pianchão, com o “Autorizado” no papel e o despacho para o Serviço de Pessoal providenciar. Arrecadou o dinheiro das apostas, diante do pessoal ali boquiaberto.
Ninguém imaginou como conseguira dobrar o inflexível chefe.
Mas vá escutando: ele seguiu o homem algumas vezes, o bastante para conhecer-lhe o endereço e saber-lhe certos hábitos. E foi isto sua valência.
Uma noite, lá pelas onze, ele bateu à porta:
– O doutor Ernesto está? É urgente!
Ele entrou; mandaram chamar o homem, que veio espantado com uma toalha amarrada na cintura e quase desmaiou ao vê-lo com o requerimento: assinou sem pestanejar.
Também, pudera! A porta onde ele batera foi de um motel, onde o chefe durão e intransigente estava em companhia da puritana secretária.
Não faltou mais licença pro Pianchão.