A maldição da Canabrava: o menino que virou bicho
Redação DM
Publicado em 10 de julho de 2017 às 23:57 | Atualizado há 8 anosTodo mundo tem verdadeiro pavor de praga rogada, embora não se saiba, ao certo, se existe fundamento no resultado de tais imprecações. Diz o povo que praga de mãe pega, e se for rogada em cima do filho com vontade mesmo, este carrega essa maldição até o fim da vida. Vai para a cova com o pavoroso anátema.
No respeitante a praga de mãe, existe o exemplo do folclórico Romãozinho, que, segundo a lenda, fora incumbido pela mãe de levar ao pai, na roça, uma gamela de comida, como é costume no sertão. No caminho, o menino comeu o de comer, e, chegando de mãos vazias, disse ao pai que a mãe não lhe mandara comida porque estava era senvergonhando com outro homem. Explodindo de raiva, o pai foi para casa e castigou a inocente mulher de tal forma que lhe provocou a morte, enquanto Romãozinho dava sonoras gaitadas. Antes de morrer, a mãe amaldiçoou o filho, que, a partir de então, passou a vagar pelo mundo, com o espírito do Capeta encarnado, caçando jeito de atentar o povo, através de diabruras, como jogar pedras no telhado, soltar animais do ceveiro, cuspir nas panelas, mijar nos potes, não sem fazer acompanhar essas coisas com ruídos medonhos e apavorantes. É uma das versões que conheço. Mas há outras.
A menos de légua lá do Duro, existe um lugar por nome Boa Esperança, que – dizem os antigos – era domínio do Romãozinho, que quase matou de fome uma velha que ali vivia, de tanto jogar porqueiras nas panelas e nos potes. As latumias só acabaram quando Boa Esperança foi benzida.
Nos meus tempos de menino, vez por outra eu escutava histórias de patacoa-das que cheiravam a coisas do Romãozinho.
Muitos causos de consequência de praga de mãe enriquecem o folclore de muitos lugares.
Quando advogava lá no Duro, na década de oitenta, passando por Barreiras, na Bahia, para visitar minha irmã Regininha, o meu cunhado Oswaldo, que andava sempre viajando, mercê de sua atividade de comerciante, e contou-me um causo que estava em evidência por lá, e que, de certa forma, está vinculado a esse negócio de praga de mãe.
Contou-me ele que num lugar por nome Canabrava, naquela região mesmo, havia uma senhora muito disposta chamada dona Sinhá, que fazia tudo quanto era serviço, inclusive labutava no curral, tirando leite das vacas. Lá pelo ano de 46, dona Sinhá desleitava uma vaca coiceira e estava nervosa por uma razão qualquer, acho que era a vaca sacudindo o sedenho do rabo na cara dela, e acabou soltando a curraleira curral afora. E naquela labuta, chegou um de seus filhos, que não tinha mais de seis ou sete anos, e começou importuná-la com uma daquelas birras de menino. De cabeça quente, sem dúvida porque a vaca estava lhe dando trabalho, dona Sinhá bradou:
– Ora, vá pro inferno, você e essa vaca!
Quando acabou de tirar o leite, ela procurou o menino em tudo quanto foi lu-gar possível, mas não o encontrou. Deram notícia de seu rastro, junto com o da vaca, numa das estradas, mas não se soube mais de noticia nem do menino nem da vaca. Para inteirar as medidas, destampou um pé-d’água medonho na região, chovendo ininterruptamente durante mais de dez dias, enchendo as grotas, apagando vestígios e impedindo a monstruosa busca empreendida pelos moradores das rodeanças.
Frouxaram de mão. Foi a derradeira graça: nem o menino nem a vaca apare-ceram mais, até quando tive notícias de lá.
E tempos atrás, o povo da região de Canabrava noticiava com certo pavor o aparecimento de um homem todo cabeludo que surgia nas matas que rodeiam a Canabrava, inclusive para pessoas que conheciam com detalhes a misterioso caso do menino e da vaca.
Testemunhas oculares estão crentes de que – pela aparente idade do desconhecido – tratava-se do filho de dona Sinhá.
Se há um mistério no desaparecimento de uma pessoa, que parece até ter vi-rado alcanfor, ouvi da boca de uma tia de um outro desaparecido o intrigante reaparecimento de um menino de menos de cinco anos, por Nome Rubinho, que passou dez dias no mato e foi encontrado a quase três léguas da casa. É neto de Adelino (velho vaqueiro do sertão) e em janeiro de 82 sumiu misteriosamente do terreiro de casa. O sertão estava alagado e durante mais de semana caiu água no município de Conceição do Tocantins, dificultando as buscas incessantes que mobilizaram parentes e conhecidos. No fim de dez dias (a mãe já tinha botado o menino na conta de morto, pois cobra, onça e enchente era o que havia), quando desconhecidos, passando por umas várzeas a quase três léguas, em lugar oposto ao das buscas, encontraram o menino chorando. O bichinho já era ladinozinho, que soube dizer onde morava, e os homens foram levá-lo aos pais, que quase deram um treco, de tanta alegria.
Refeitos da angustiante situação, apressaram-se em indagar ao menino como sumira e como sobrevivera no meio de tantos perigos. Ele, com seu curto vocabulário, explicou que saíra atrás de uma porca parida para brincar com os leitõezinhos e se perdera, sovertendo no mundo. Todas as noites, a madrinha dele colocava-o em cima de um pau para não ser comido por bicho do mato.
Não me lembro mais é como ele conseguiu se alimentar, pois consta que vol-tou sem vestígios de desnutrição. A madrinha eu não soube decifrar.
Mas logo que o aguaceiro medonho me permitiu, fui decretado lá na Concei-ção apurar essa história direitinho e vou logo-logo contar como se deu.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])