A mula “Dengosa” de Zé dos Santos
Redação DM
Publicado em 9 de abril de 2017 às 22:08 | Atualizado há 8 anos
Há quase cinquenta anos atrás, presenciei uma cena que me comoveu: no caminho de Conceição do Tocantins, num mês de julho qualquer, quando vinha da festa do Divino voltando pra fazenda, testemunhei a fidelidade do cachorrinho “Turco”, de um tal Raimundinho Piauí, que encontrei estendido no meio da estrada, nas terras da Cabeceira Verde, sujeito a ser comido pelas onças que trilhavam naquela região.
Ainda vou contar esse causo, que merece a gente assuntar.
Aqui, a história, é outra, que mostra quão humana é, certas horas, a natureza do que chamamos de bicho bruto, que, não obstante ser capado do juízo, dá mostras de estar muitos furos acima de qualquer vivente dito racional.
A História registra o caso do caõzinho de Chopin, que acompanhou o féretro de seu dono e permaneceu sobre sua sepultura, sobre a qual morreu de fome e sede.
Causos de “humanidade” de animais ocorrem aos montes, mas não carece a gente ir longe. Mesmo na cidade grande, a gente tem notícia de fatos dessa natureza.
Quando morava em Belo Horizonte, escrevi um conto, pelo qual me deram lá um prêmio literário e um diploma, sobre uma vaca que fora criada à feição de gente de casa, que sofria e se alegrava conforme sofriam e se alegravam os donos. Uma pessoa, lendo o conto, me narrou a história de uma mula, pertencente a um bombeiro de posto de gasolina, e eu, muito especulador das coisas, fui atrás do homem pra me contar a histó¬ria. E ele contou.
O Zé dos Santos – depois me tornei amigo dele – morador nos arredores de Sabinópolis, lá nas alterosas mesmo, me contou o causo de sua mula, a “Dengosa”, inteligente e cheia de iniciativa, na qual andava montado para paquerar nas festas dos arredores da cidade, de onde Zé dos Santos era.
Como em toda cidade do interior, apareciam festas pelas rodean¬ças, e ele, rapaz bem apessoado e tirado a conquistador, pegava a “Dengosa”, escovava-lhe o pêlo, engraxava os arreios, enfronhava-se na roupinha de ver Deus e chegava todo importante para desfrutar da cachacinha pura da terra, comer um churrasquinho de graça (pois de graça ele tomava, como eu, até injeção), dançar com a moçada e espalhar seu “charme”, deixando, não raro, um coração pulsando em sua intenção e marcando um reencontro com o novo amor no próximo bate-chinelo que surgisse.
Mas o Zé dos Santos, muitas vezes, aproveitava que a pinga era de graça e resolvia “lavar a égua”, no que acabava ficando mais bêbado que um gambá. Terminada a festa, montava na “Dengosa”, que, sabida como ela só, pegava o rumo de casa e sacudia os cascos para a residência do Zé, que ficava do lado de dentro de uma cerca de arame com cancela.
Chegando à cerca, “Dengosa” empurrava a cancela com a cabeça e se esta estivesse trancada com a travanca pelo lado de dentro, a mula relinchava (ou zurrava; não sei se zurrava ou relinchava) até o Zé acordar, e ele, após abrir a cancela, escanchava de novo e só ia acordar quando ela parava no terreiro da casa, onde, diante do aviso da “Dengosa”, o pessoal da casa vinha tirar o Zé de cima da sela e desarrear “Dengosa”.
Mas quando, ao chegar à cancela, os avisos da mula não conseguiam despertar o dono, esta permanecia de pé até que ele acordasse ou que algum passante visse a cena e viesse abrir a porteira. As vezes – dizendo o Zé – a mula ficava até de manhã.
O animal voltar para determinado lugar sozinho não faz novidade nenhuma, e quando se viaja com montaria desse feitio, é necessário que a peiem com peia-pé-e-mão e lhe ponha chocalho, senão, no dia seguinte, ela amanhece no seu pasto.
Certa ocasião, indo ao Pintado, fazenda de meu pai, achei de amontar, na volta, numa égua velha que ele tinha e que devíamos trazer para a fazenda Olho d’Água Grande, de tio Dito. De lá, eu prosseguiria viagem na garupa do meu cunhado Moreno, conforme eu fora.
Na saída, houve a prevenição do vaqueiro para não deixarmos a égua à vontade, que ela era danada pra mode fugir de volta.
Foi nada, não. Lá pelo meio do caminho, passou um magote de cavalos no rumo do Pintado, e a égua endureceu o queixo pra voltar, que não havia remédio para segurá-la. Quando tentei dar-lhe um safanão, ela, talvez reconhecendo algum dos animais como pasteiro junto com ela, deu uma negaceada de corpo e, desprevenido, fui cair numa moita de capim, felizmente não me machucando, enquanto a danada correu com a sela, enlotando nos cavalos que passavam, e fiquei escutando seu relincho até sumir nuns brejos lá longe. Para mim, aqueles relinchos eram pura gozação por ter corrido com a sela e me deixado desmoralizado… e a pé. Ela foi bater na porta da fazenda, e o vaqueiro, vendo-a arreada e sozinha, tratou de pegar a estrada com outro animal arreado, alcançando a gente no Olho d’Água Grande.
O causo da égua velha é comum, pois todo mundo sabe que existe animal assim e não é de causar espanto. Mas animal feito o “Turco”, de Raimundinho Piauí (que ainda vou contar) e da mula “Dengosa” já é mais raro.
E ainda existe gente que se considera mais inteligente que os bichos. Chamar os outros de burro, muitas vezes, é ofensa. . . mas é pro burro.