A OAB deve saber que o juiz não é Deus
Diário da Manhã
Publicado em 9 de agosto de 2018 às 23:29 | Atualizado há 7 anosNo último dia 7 de agosto em curso, sob a batuta do Dr. Alexandre Ramos Caiado, foi realizado no auditório da Faeg, pelo “Movimento de Respeito e Lealdade à Advocacia”, um ciclo de palestras denominado “Como se defender do abuso de autoridade”, que contou com expressivo número de participantes, que prestigiaram as bem colocadas palestras proferidas por gente de peso da advocacia: o próprio Dr. Alexandre Caiado, os advogados Alexandre Amui, Manoel Bezerra Rocha, Alexandre Pimentel, Marianne Cardoso Schmidt e Tânia Morato Costa, do promotor de Justiça Jales Guedes de Mendonça e do delegado-geral da Polícia Civil, André Fernandes de Almeida.
Após as palestras, houve um produtivo debate, em que ficou mais do que evidenciado o abuso de autoridade em desfavor dos advogados por aqueles que se escondem por detrás do chavão “você sabe com quem está falando?”. Discutiu-se o flagrante desrespeito das autoridades judiciárias para com os advogados, que se sentem constrangidos a toda hora, seja quando vão atender a clientes nos presídios, seja quando são impedidos de falar com um juiz.
Existe uma velha história de que há duas espécies de magistrados: os que acham que são deuses e os que ainda têm dúvida.
Muitos juízes, em explícito procedimento de pedantismo, acham que estão acima da lei, como verdadeiros semideuses. E o pior é que se fecham num espírito de corpo tão grande que raramente surge alguma punição por abuso de autoridade. Após vermos que os juízes se julgam deuses, aqui vai uma sugestão: doravante concursos para a magistratura deverão exigir que os candidatos operem pelo menos três milagres para serem aprovados.
Pois bem. Não são poucos os advogados, não só de Goiás, mas de todo o Brasil, que se queixam de que os magistrados distanciam-se dos seus jurisdicionados, tornando-se intocáveis, como se a dificuldade de acesso lhes conferisse importância e respeito.
No Tocantins, onde exerci a magistratura por trinta anos, um Estado foi criado para ser moderno, o objetivo dos primeiros dirigentes do Judiciário era fazer da Justiça acessível, pelo menos no tocante ao contato com o povo, pois, no nosso entender, o juiz que não conhece aquele que vai julgar torna sua missão mais difícil.
Em países mais adiantados, existe até uma fase do processo em que o juiz, antes de dar uma sentença criminal, nomeia uma comissão para elaborar um parecer sobre aquele que será julgado: se é bom pai de família, bom amigo, bom vizinho, bom pagador, enfim, uma série de dados que integram o seu caráter. Depois desse relatório, somado ao que consta dos autos, o magistrado decide.
É evidente que em Comarcas muito grandes, onde há vários juízes, é impossível que o magistrado conheça seus jurisdicionados, mas nas em que existe apenas um magistrado, onde praticamente todos conhecem todos, é até uma obrigação do juiz conhecer o mais que puder seus habitantes. Ele deve participar da vida social, e não ficar amoitado, encastelado na sua toga e enclausurado no seu gabinete.
Isto não deslustra a missão judicante, pois na hora em que estiver prolatando uma sentença o magistrado deve ser imparcial, mas deve levar em conta as peculiaridades regionais, não levando ao pé da letra a lei, a ferro e fogo, mas aplicando, sempre que possível, o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”).
Por outro lado, não são poucas as reclamações de advogados, do que chamamos de “juizite”, principalmente dos magistrados mais modernos, mais tangidos pela vontade de firmar-se como autoridade do que por pedantismo. E às vezes advogados deslocam-se para Comarcas distantes para uma audiência, que, sem mais nem menos, é retardada, ou mesmo cancelada, sem motivo plausível, simplesmente porque o juiz não compareceu ou, mesmo comparecendo, não a realizou.
Os magistrados são empregados do povo, pois ele é que lhes paga, e por isto o advogado (que representa a parte no processo) merece todo o respeito, mesmo porque se não houvesse o causídico a Justiça não existiria. Até a lei beneficia o juiz: se a parte (leia-se: o advogado) não comparece à audiência ou deixa de praticar um ato, é penalizada: pode ser decretada a revelia ou operar-se uma preclusão. Mas se o juiz deixa de realizar uma audiência, não lhe pesa nada, mesmo porque os prazos para o juiz especificados no Código – que poderiam ensejar uma punição – são letra morta: quem é que tem peito para representar contra aquele que conduz um processo de seu constituinte?
Aí é que está o erro: juiz, desembargador e ministro não são melhores do que ninguém, e quem erra deve arcar com as consequências, deixando o “esprit de corps” para outras ocasiões muito especiais, em que o corporativismo pode ser aplicado (no caso, por exemplo, de flagrante perseguição a um colega ou de qualquer caso de assédio moral). Assim, é preciso descer do pedestal e despir-se da vaidade, pois a magistratura é tão sublime e importante, que o simples fato de estar em suas mãos decidir sobre a liberdade e a economia de seu semelhante já o coloca em posição de destaque. Não podemos vestir roupas de primeiro mundo em um Judiciário que precisa de atitudes para alcançar aquele patamar. Vaidade nunca combinou com a magistratura, pois, em certas ocasiões, em vez de angariar respeito, o juiz que age de forma pedante conquista é antipatia.
Aqui vai um conselho de um colega já calejado aos magistrados mais jovens: o acesso à Justiça é a senha-mestra para a distribuição justa do Direito, e essa acessibilidade começa no receber aquele que busca, às vezes desesperadamente, um ponto de apoio para fazer valer seu direito. No momento em que estiver decidindo, ponha-se no lugar daquele sobre o qual pesará sua pena, pois na complexidade de um caso pode haver um momento em que o magistrado faça emergir sua sabedoria, como Salomão, que decidiu o caso da criança cuja maternidade era disputada por duas mulheres.
Acima de tudo, colega, seja humilde e decida com justiça, não se vangloriando de ter penalizado o grande pelo simples fato de querer exibir-se e mostrar poder, nem tripudiando sobre o infeliz, que talvez nem tenha onde cair morto.
Justiça é, acima de tudo, bom senso. E a humildade engrandece. Pedestal foi feito para santo. E nós estamos muito longe disso.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])