A outra margem do céu
Diário da Manhã
Publicado em 4 de fevereiro de 2017 às 01:34 | Atualizado há 8 anosPorto dos Barreiros tinha pequeninas flores pintadas com o amarelo-ouro das borboletas das matas da região. As correntezas espumantes e frias do rio Paranaíba galopam no lombo das pedras pontudas. Quatro estacas de aroeira foram cravadas nas margens do rio que divide Goiás e Minas Gerais; duas do lado de lá, outras duas do lado cá. Dois cabos de aço esticados à esquerda e mais dois à direita serviam de suporte à balsa tosca que atravessava animais e pessoas que iam e vinham a Goiás pela rota mais curta entre o Rio de Janeiro, cruzavam o Triângulo Mineiro, até às minas de ouro de Goiás e Mato Grosso. Assim, Porto dos Barreiros se tornara um ponto de ligação entre o Rio de Janeiro, Uberaba e outras cidades do sul mineiro e as matas escondidas do planalto central. Os cabos de aço presos à aroeira representavam o elo de um rito de passagem interessante para quem se aventurava por essas bandas.Os garimpos de ouro piscavam na mente de homens aventureiros, inclusive do barqueiro Zequinha. Eram setas que atravessavam as madrugadas aventureiras do barqueiro. Sua esperança fez morada do outro lado, nas terras dos goyases com os sonhos das lavrinhas do além rio. Os fios de aço esticados entre as estacas tocam nas águas como se fossem cordas de violão zunindo nos gerais. O barqueiro morava próximo da barca.
Num dia de rotina da sua lida diária Zequinha, com o caçula de seus filhos, entram na barca tosca boiando sobre as águas profundas de março. Ajeitara num canto, para “a hora da precisão”, um remo de madeira gasto pelo tempo. Para o barqueiro a outra margem é um céu de riquezas. Mas todos precisa trabalhar, vencer a corredeira até o outro lado para alimentar sua trinca de filhos órfãos de mãe. As mãos tostas pelo sol grudam no arame como pés de um canário preso na ‘fisga’. Seus braços de aroeira aluem a balsa; o corpo do barqueiro dança bêbado com a força das águas. Suas mãos se alternam no ar, na corda de aço; a balsa desliza pelo rio. O movimento escreve poemas nas águas riscando-as igual vaga-lume em noite sem lua do cerrado. No banco ao lado seu filho magro e descalço se encolhe de frio . Seu corpo pequeno e frágil fica retesado. Ainda a pouco contara a seu pai sobre o canto dos canários que o saudavam todas as manhãs. Isso o deixava feliz. O pai observava o menino com ares de ouvinte de passarinhos. Os pés machucados pelos tropicões nas pedras e nos tocos do caminho de casa continuam mergulhados na água podre dormida debaixo do banco. O menino, espera, passivo, mais uma travessia.
Seus olhos castanhos estão longe. Nem dá atenção aos movimentos do pai ou ao perigo das corredeiras do rio; olha firme, rente a proa. Seus olhos são dois faróis espreitando a travessia. Eles também abrem as portas nos céus da outra margem. No alto do rio o vento sopra forte. Explode um relâmpago deixando no ar um clima assombroso. O raio rasga o ventre do sertão e corre pelas águas até romper o cabo de aço que prende a barca às estacas. O barqueiro e o menino desaparecem nas águas revoltas e famintas de gente. A tempestade cessa depois de cerca de duas horas e o céu clareia.
Apenas a música do canário amarelinho que nem flor de ipê ecoa na mata. Ninguém responde. Até o vento para de soprar. As águas, viúvas do barqueiro, soluçam por cima das pedras do grande rio. A barca, à deriva, escorre abraçada pelo rio. O remo puído fica órfão das mãos calejadas de Zequinha.
A matula dentro da capanga de pano é abandonada no fundo da balsa.
Borboletas amarelas voam confusas sobre a balsa.
(Doracino Naves, jornalista; editor do Portal Raízes)