Opinião

A quem (des)interessa o cumprimento da lei?

Redação DM

Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 01:13 | Atualizado há 8 anos

A organização de um Estado Democrático de Direito impõe a divisão de atribuições dos órgãos públicos e revela-se não apenas como pressuposto, mas também como verdadeiro direito fundamental do cidadão, servindo de base às estruturas dos regimes não autoritários. Longe de se objetivar disputas de vaidades corporativistas, a observância da distribuição de competências dentre as mais variadas instituições visa combater, sobretudo, a concentração de poderes em um mesmo órgão e a preservação de direitos, dirimindo os riscos de abuso de poder.

Não à toa, a Constituição Federal, em seu art. 144 e parágrafos, não deixou margem à dúvida sobre as funções designadas a cada instituição que compõe a Segurança Pública. Às Polícia Militar e Rodoviária Federal cabem a polícia ostensiva de segurança da população e de patrulhamento das rodovias federais, respectivamente. Já às Polícias Civil e Federal, incumbem as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais.

Neste sentido, se mostra inconcebível e até mesmo equivocado o uso do termo “reserva de mercado” para se referir às diferentes competências legitimadas às funções dos cargos da segurança pública. Se trata, no caso, de reserva legal. Ao se considerar principalmente que a atividade policial muitas vezes se desenvolve na esteira da restrição de direitos individuais, os limites de competência atribuídos aos diversos cargos policiais não podem ser tratados de uma maneira rasa.  Ao contrário, jamais podem ser alterados ou incorporados por acordos institucionais, provimentos, regulamentos, tampouco pelo arbítrio de castas de categorias, como tentam aqueles que defendem a lavratura dos  Termos Circunstanciados de Ocorrência de forma indiscriminada, por todo e qualquer policial, ao arrepio da lei vigente. A questão esbarra nos direitos individuais do cidadão.

A lei 9.099/96, que trata dos crimes de pequeno potencial ofensivo, nominou o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) como o procedimento sumário que indica à Justiça a autoria, as provas e as circunstâncias de um fato previsto como crime, cuja pena máxima prevista é de até dois anos. Todavia, antes mesmo de ser lavrado o Termo, faz-se necessária uma análise prévia de juízo de valor do fato ocorrido, por um profissional indicado pela lei, habilitado para tanto, afim de se enquadrar o ato praticado à norma, e em ato posterior, colher os elementos mínimos de provas.

A pergunta é: no sistema de persecução penal brasileiro, qual é o profissional legitimamente autorizado a indicar, abinicio, ao Poder Judiciário, se o fato praticado por um cidadão, se trata de crime ou se este se enquadra como menor potencial ofensivo? Simples, o Código de Processo Penal diz ser a autoridade policial e a Lei dos Juizados Especiais o faz com a mesma redação,  no art. 69, determinando que os TCOs sejam elaborados pela autoridade policial. Assim, o legislador definiu a competência do ato.

Afim de se identificar qual o é profissional detentor do cargo alusivo ao termo autoridade policial, as LEIS infraconstitucionais vigentes o apontam com precisão como sendo o Delegado de Polícia, vejamos:  o § 1º do art. 2º da Lei Federal 12.830/13, estabelece que “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito ou outro procedimento previsto em lei”. Dirimindo a questão de vez, o § 1º do art. 6º da Lei Estadual nº 16.901 de 2010 define o termo da seguinte forma: “Considera-se autoridade policial, o Delegado de Polícia que, legalmente investido, exerce, no âmbito da polícia judiciária, competência legal para consecução dos fins do Estado …”.

Não resta dúvida, portanto, quanto a qual órgão o legislador indicou como o responsável pela elaboração do TCO, não sendo outro senão as Polícias Civis ou Federal, dirigidas por Delegados de Polícia, já que estes são os únicos profissionais da segurança pública brasileira pertencentes à carreira jurídica, como já confirmado em julgamentos distintos pelo plenário do STF (ADI´s 3441, 2427 e 3460). Se a vontade do legislador fosse diversa, desde 1996 tais procedimentos já estariam sendo lavrados também por policiais militares, rodoviários federais, ferroviários, policiais legislativos, agentes penitenciários e guardas municipais, e não os são, mesmo após 21 anos de efetiva vigência da lei.

Não é verdade afirmar que a maioria da jurisprudência autoriza, por exemplo, o policial militar a elaborar o TCO, sendo o contrário defendido pela ampla maioria dos julgados dos tribunais superiores, como o exemplo do  Recurso Extraordinário nº 702.617 de 31.08.2012 do STF, em que o ministro Luiz Fux argumenta: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve a Ministra Cármen Lúcia como redatora para o acórdão, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar”.

O uso do enganoso discurso simplista de ser o TCO “mero registro de fatos” ou mesmo que a “liberação” para lavrá-lo ensejaria maior eficiência à polícia ostensiva, sob a alegação da não necessidade de deslocamento até uma delegacia de polícia,  deve ser analisado sob o enfoque realístico.

Primeiro, porque a lavratura do procedimento feita por policial sem a formação devida, ensejaria em risco a erros ou abuso de poder, acarretando danos irreparáveis ao cidadão apontado como autor do crime, mesmo que posteriormente corrigidos pelo judiciário. Ao se considerar que a análise e aplicação da subsunção do fato à norma é matéria de Direito Penal inserida no curso superior de direito, lembremos que país afora, os concursos para ingresso na ampla maioria das vagas para a Polícia Militar não exigem formação em direito. Ou seja, os policiais militares, além de não serem autorizados por lei para lavrar o TCO também carecem da formação jurídica necessária à correta análise prévia do ato. Sua “liberação” significaria, portanto, verdadeiro atraso frente aos direitos individuais duramente conquistados pós ditadura brasileira.

Em segundo, a justificativa de que a Policia Militar se tornaria mais eficiente no combate à criminalidade não encontra sustento, a partir da análise de que o policial em patrulhamento que atende a ocorrência, necessariamente teria que deixar o policiamento ostensivo e encaminhar a situação a um quartel,  para a formalização do procedimento, já que o Termo não se formaliza na viatura. Logo,  deixaria de se  realizar o patrulhamento para levar a situação a outro local para ele ou outro policial militar lavrá-lo. Isso tornaria a Polícia Militar mais burocratizada e desviaria o PM da segurança das ruas para funções cartorárias. Uma coisa é certa: cada policial que realiza indevidamente a função investigativa e cartorária representa menos um policial fardado nas vias públicas para inibir a prática de crimes.

Por fim, sem fechar os olhos ao aprimoramento necessário do atual sistema de segurança, os Delegados de Polícia defendem o devido cumprimento das leis, cujas instituições devem-lhe a obediência máxima. Não se trata, portanto, da mera liberalidade daqueles que exercem o cargo de Delegado de Polícia “liberarem” aos policiais das mais diversas instituições a lavratura dos termos circunstanciados de ocorrência, vez que este papel cabe, tão somente, ao Poder Legislativo.

 

(Silvana Nunes, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de Goiás – Sindepol-GO)

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