Opinião

A revolução é o capital inicial do profeta

Redação DM

Publicado em 27 de junho de 2017 às 22:59 | Atualizado há 8 anos

“Quando a prosperidade nacional refloresce, a esperança messiânica se esvai” (WALLIS, W. D.)

Conta o campesino, filósofo de formação Pierre Bourdieu que a religião funciona como sistema simbólico estruturante e estruturado, constrói a experiência, converte o ethos em ética sistematizada e racionalizada, com normas explícitas. Assume funções ideológicas, prática e política de absolutização do relativo e legitimação do arbitrário, grupo ou classe, assegura reforçar uma força material simbólica traduzida em um grupo ou classe, legitimando uma classe, a estrutura social sacralizada pela “naturalização” eternizada.

Com relação à conversão em limites legais das barreiras econômicas e policiais, a religião exerce a consagração e reproduz de forma transfigurada a estrutura das relações econômicas e sociais, além de contribuir para o reforço simbólico de suas sanções. A alquimia religiosa faz “da necessidade virtude”, segundo William James “torna fácil e feliz o que é inevitável” e o “impensável” em limites lógicos, desta maneira, a eucaristia é representação de “uma moral estritamente formalista do ‘toma lá dá cá’”. Se a religião cumpre funções sociais, passível de análise sociológica, deve-se ao fato de que os leigos não esperam dela apenas justificações capazes de livrá-los da miséria biológica. A religião lida com as funções psicológicas (ou “pessoais”) como uma expressão de etonocentrismo, resultado do desenvolvimento burguês urbano levado a interpretar a história e a experiência humana como produto do mérito. Assim como a religiosidade pessoal exige disponibilidade, tal qual a virtude de Aristóteles, o “aumento da sensibilidade pelas misérias da condição humana se torna viável a partir de um tipo determinado de condições materiais de existência” (BOURDIEU, 1998, p. 49).

O Paraíso é lugar especial individual e corresponde à pequena burguesia; o interesse religioso tem necessidade de legitimação; a estrutura das relações de classe determina a divisão do trabalho religioso onde a mensagem religiosa busca satisfazer o interesse religioso e determinado grupo de leigos, exercendo sobre este relativa legitimação arbitrária à medida que ocupa determinada posição na estrutura social e trata de conceitos tais como “redenção”, “humildade”, “pecado”, que definem sociologicamente a função da religião, suas práticas e crenças. Esta harmonia ocupa pela via de regra da reinterpretação um lugar na estrutura social, quanto maior for a distância econômica, social e cultural, mais ampla esta reinterpretação. Por referência a esta estrutura a religião reaproxima-se do seu conteúdo original, ou seja, na produção, reprodução, circulação e apropriação da mensagem a qual a Igreja do século XIII não consegue dissimular enquanto doutrina montada em cismas e heresias internas, representada por práticas de uma sociedade dividida em grupos e classes destinada à manutenção, perpetuação e reprodução da ordem social onde imperam a religiosidade dominante, a religiosidade dominada, cuja representação é dominada pelo mundo político e o ethos da resignação e da renúncia, ou a manipulação simbólica de aspirações e conflitos através da compensação, salvação e ascetismo.

Qualquer uma das grandes religiões universais apresenta tal pluralidade de significações e funções (p. 53) fomentadas na tradição farisaica, tensões e conflitos, pastores seminômades, agricultores sedentários, grupos sem-terra, grandes proprietários, artesãos e nobres citadinos. Esta a função do conhecimento-desconhecimento de especialistas religiosos forçados a ocultar a si e aos outros a intenção política de seus atos, negada. É no contrário deste espectro que o profeta encontra campo, princípio e ética profissional quando recusa publicamente aos interesses temporais, ou, a dialética da fé e da má fé (mentira para consigo, individual ou coletiva) no jogo de máscaras, jogos de espelhos e das máscaras em frente aos espelhos.

O interesse da empresa religiosa esbarra mais além do que a força da crença, ou seja, no interesse do grupo em ocultar a contradição pelo fato de que “a sociedade se contenta sempre com a moeda falsa de seu sonho” (MAUSS, apud BOURDIEU, 1998, p. 56). O êxito do profeta situa-se na fronteira incerta do anormal e do extraordinário, cujas condutas excêntricas e estranhas podem ser admiradas como fora do comum e desprezadas como desprovidas do senso comum. A estrutura das relações que abarcam os campos do religioso e do poder configura a estrutura das relações constitutivas com função externa de legitimação da ordem, manutenção e subversão do simbólico e que inclui a subversão política dessa ordem através da autoridade religiosa, das relações objetivas, também a produção, reprodução e distribuição de bens religiosos pertencentes a grupos ou classes. A legitimação suprema acontece pela “naturalização” que restaura o consenso, a ordem do mundo, a imposição e inculcação de esquemas do pensamento comum, da afirmação e reafirmação de tal consenso mantido por hierarquias as quais, em última instância, caracterizam a ordem cósmica estabelecida por Deus, portanto, eterna e imutável.

Nesta unificação de universos separados a contribuição da Igreja é expressa na manutenção da ordem simbólica que reside menos na transmutação para uma ordem mística que a transmutação para uma ordem lógica, segundo Aristóteles os “lugares naturais” ou relações de ordem. Ao contrário, essa transmutação somente pode ser abolida através da revolução simbólica, correlata a uma profunda transformação política e dissolução progressiva da ordem feudal. Enquanto a educação aristotélica propõe etiquetas e boas maneiras, as normas garantem a ordem social. A aptidão para formular e nomear os sistemas simbólicos estrutura as relações de classe, e esse é o capital inicial do profeta a exercer uma ação de mobilização sobre uma parcela poderosa de leigos, pela via do que conceituou Marx Weber de teoria do carisma (BOURDIEU, p. 73). As causas coletivas orgânicas determinam mais intérpretes que senhores, fenômeno que Marcel Mauss assim observa: “As fomes e guerras suscitam profetas, heresias, contatos violentos, quando mestiçagens de sociedades inteiras fazem surgir forçosamente novas ideias e novas tradições” (p. 74).

O profeta reúne em seu discurso as palavras exemplares do significante com algum significado potencial e implícito, e reúne condições para mobilizar os grupos e as classes por meio de sua linguagem, afinal, ali elas se reconhecem, e foi dessa maneira que, por ter se livrado da mera reprodução, as sociedades lideradas pelos profetas–inventores do futuro escatológico–entraram par a história. Assimétrica, a relação estabelecida entre revolução política e simbólica supõe sempre uma revolução política, a qual, por si só, não é suficiente para promover uma revolução simbólica porque “a tradição de todas as gerações mortas pesa excessivamente sobre o cérebro dos vivos” (p. 77), espíritos do passado que emprestam seus nomes, palavras de ordem e costumes para a construção de um novo palco histórico sob o disfarce respeitável.

Para que haja revolução, há que se operar a revolução simbólica que a revolução política requer. Daí os profetas os quais, não podendo pensar os limites de seu poder, tornar-se atores do roubo do pensamento que lhes é impingido.

E o pulso, ainda pulsa!

 

(Antônio Lopes, escritor, filósofo, mestre em Serviço Social/doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG)


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias