A sociedade sangra uma gengiva sem dentes
Redação DM
Publicado em 6 de julho de 2016 às 03:17 | Atualizado há 9 anos“Um preto, um pobre, uma estudante, uma mulher sozinha, blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais, garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro, os humilhados do parque com os seus jornais” (Alucinação–Belchior)
Obscura, a (des) humanidade centra no sol que nasce atrasado, toma o elevador social em gráficos que descem e sobem, fingem que caem, e, enquanto balança as diferenças sociais, equilibra-se enfim, e, numa corda sem fim, brinca com a mente da gente que mastiga a realidade em gengiva que sangra sem dentes, sem dor nem sorte.
Entre fetos e fatos notícias frescas dão conta dos que já nascem em berço decente, diferente dos normais, atores sociais alijados do status quo, apartados–no poder de compra–da boa gente que o shopping traga pelas vias da goela consumista, fetiche instalado a crédito, na entrada principal. Endividada, sôfrega, efêmera (des) caminha os tropeços da sociedade civil (des) organizada que retrata imagens de um filme concreto e cruel. O pêndulo cardeal da mídia vende e repassa o poder de persuasão eletrônico e articulado em rede. A alienação mundial ecoa a lama que escoa, à míngua, e, na língua rala da mentira contada, anota na caderneta do fiado, na cor amarela, os pendentes, em azul, para quem paga, e, de vermelho a lista dos imorais.
A luta pela existência faz do final de semana presente passado, apressa o trabalhador pelas vias do imposto – posto -, que lhe rouba o parco lucro nos dias que restam do calendário útil, voraz e violento. Preso ao globo da morte solidária o pedinte ouve o silêncio mundo carente, estende mãos calejadas pelo desemprego, reconta fotos em sangue e fatos que antecedem seu destino à cova enquanto sina do sujeito sem face habitante das esquinas da urbe. O vaivém acalmado das semanas que antecedem o final das férias, de bolsos vazios, acalma as ruas, retira da lista de dependência diária o prozac, desconstrói a sombra apressada de transeuntes movidos a estampido de buzinas de veículos modernos, armas antigas das trincheiras urbanas modernas. Cercada de concreto vertical a cidade grande é manchete pequena que denuncia o que mais dói no trabalhador sem face, negro, pobre, analfabeto funcional, com nome e roupas manchadas de estigma, fadado a cavar na forma de cisterna sua aposentadoria em cova rasa.
Bipolares, os holofotes da fé conivente alardeiam a promessa que mente e empurra almas sedentas,–aos gritos, e, a alforje -, no despenhadeiro profundo da escassez da moral, fazem queimar a língua do crente e do descrente. Há uma força acinzentada, há uma gente que morre por hora, e, de frio, nas esquinas do poder, existe uma denúncia de abandono e do peso da exclusão social, em vão. O poder de fato é dor aparente da infeccionada raiz do sistema que separa e marca o gado trabalhador destinado à miséria da razão. O coletivo vai e não sabe se volta. O terminal de ônibus é funil da incompetência das gestões. O final da jornada separa a periferia da burguesia pelo medo e insegurança, anula quaisquer possibilidades de inclusão. Sol e chuva moldam restos de concreto, lata e papel, lares que escondem a parte da sociedade destinada à miséria da razão ou à penitenciária mais próxima, universidade do diabo, frente de batalha inócua da população parida no pecado, punida e relegada às celas do inferno para a cura de seus males internos e febris.
Se “não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que determina a sua consciência” (MARX), a rotina concreta do homem pobre e faminto – enclausurado na urbe violenta e banal -, denuncia o coletivo vitimado pela marmita vazia, expropriado em valores multiculturais locais, multifacetado e travestido no efêmero e líquido poder da globalização. Uma geração “vazia e sem alma” desanda–assaltada em cada esquina – pela falta de ética e razão, alimento da desrazão (des) humana. A conjuntura socioeconômica reafirma a Filosofia barata, cotidiana, impulsiva, incapaz de enxergar o homem um ser político capaz de pensar, agir, e, quando acordado, reagir. O sistema aliena através da corrupção–mãe da violência -, desencadeia a desigualdade social filha bastarda da maldição pós-moderna cuja loucura e alucinação, de imediaticidade concreta, afirma a sociedade do equívoco e da acumulação do lucro.
As substâncias revelam-se figurinhas carimbadas, sorteio das consciências. Tal qual a virgem no bordel dão fôlego à obsessão no balcão da farmácia, legitimam a proliferação da receita ilegal, barganham almas, fomentam o consumismo no shopping, caracterizam o contrabando de sexo e armas, cigarro e gardenal. Esta alucinação concreta retrata “carneiros, mesa, trabalho, um corpo que cai do oitavo andar e a solidão das pessoas dessas capitais, a violência da noite…”. Há sede de água pura e límpida que lave a alma banalizada delimitada e assaltada em virtudes, enrustida no pecado capital quando a Nação, ainda nos dias atuais, respira ares da inquisição no estreito confessionário da igreja de 2015 anos que se (re) afirma no palanque politiqueiro. Sob as bênçãos do papa “social e democrata”, rearticula-se, entalha a ferro e fogo promessas sob o perfil do cifrão. A dominação de almas, ideias e ideais, é incapaz de calçar as sandálias, a identidade ou as vestes da simplicidade honesta de Gandhi.
A pompa e paramentos ejaculam a realidade nua e crua da corrupção e conchavo em vestes que enfeitam homens comuns num cenário midiático montado a hipocrisias. A população de senso comum, adormecida e abençoada, assiste, ouve e lê o desmonte do quebra cabeças recortado em foto amarelada do tempo contemporâneo. Os dias atuais se mostram incapazes e anêmicos, sem força em reivindicar a paz, uma migalha de amor, a descriminalização da marijuana, mais honestidade, a igualdade social, exigir um naco de inclusão ou fagulha de igualdade. A transparência do poder aplica-se por via das leis de dois pesos e muitas medidas, não desvela o momento histórico-político que abriga bandidos e cerceia os cidadãos.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, filósofo, assistente social, mestre em Serviço Social/PUC-Goiás e aluno-ouvinte em Direitos Humanos/UFG)