A transformação
Redação DM
Publicado em 30 de junho de 2017 às 23:51 | Atualizado há 8 anos“Gregor acorda transformado num enorme e repugnante inseto e assim vive os seus últimos dias”.
[Franz Kafka (1883-1924); Die Verwandlung/A metamorfose; 1915.]
Ficou doente! O resultado não poderia ser outro! Sempre ansioso, raivoso e impaciente não percebera o que se passava com seu corpo, sua cabeça, seus movimentos. De tanto praticar rudezas se tornou cronicamente rude e tosco. E como consequência, de tanto ignorar sua patologia, aliás, muito grave, sua situação foi piorando, piorando, piorando… Alguns dizem que ele construiu essa doença lenta e meticulosamente.
O senhor Pedro, o simpático porteiro da repartição em que ele trabalhava jamais ouvira um miúdo “bom dia” de sua boca. As duas moças da faxina, risonhas e bem dispostas, reclamavam da mesma indiferença.
Na verdade, não se sabe ao certo, mas ele já vinha sentindo coisas estranhas! Reclamou com a esposa e com alguns poucos amigos mais próximos mas, de verdade, era de pouca conversa. Não era depressão! Era dele! Ele era assim, esse era seu jeito único e possível de ser. Preferia o silêncio, o perigoso e ameaçador silêncio!
Agora, esse mal-estar matinal era persistente e lhe acompanhava durante todo o dia; apresentava alguma dificuldade em se movimentar, começou com leve endurecimento das articulações e o instante seguinte foi emagrecer. Não sentia fome ou sede e apenas trabalhava e trabalhava. Chegou a ir algumas vezes no médico e que lhe assegurou a partir dos seus muitos exames de que não tinha nada, que era apenas mal-estar corriqueiro.
A pressão? Doze por oito; pulso de criança; os pulmões? Livres e leves; não podia ser diferente! Jamais fumou, não bebia e sequer bebia socialmente. Era abstêmio radical, talvez herança cultural do seu pai, protestante ortodoxo da Sagrada Igreja da Santidade Profunda.
Aliás, seu médico, até sugeriu que mudasse de rotina; quem sabe, sair um pouco; espairecer com amigos; viajar, se divertir. Talvez uma quebra naquela rotina fosse importante e até necessário. Ele disse: “não”!
É que sempre fazia as mesmas coisas e do mesmo jeito. Era espécie de viciado na rotina ou viciado em si mesmo. No trabalho, sempre indiferente ignorava colegas; evitava reuniões e quando o pessoal do sindicato aparecia então, tinha ânsias. Tinha pavor daquela gente com aquela história chata de reposição salarial, assembleias e indicativos de greve. Uma vez chegou a denunciar sua colega e que fazia mobilizações em favor do sindicato no ambiente de trabalho. Não aceitava esse tipo de coisa.
Seu mundo era uma previsível triangulação entre vida privada, trabalho e igreja. Isso apenas! Não entendia as razões pelas quais jamais vira alguém do tal sindicato em sua igreja e isso o aborrecia muito. “Falta de Deus”, dizia. Desta feita, ficou possesso, indignado quando soube dos escândalos de corrupção a envolver a Petrobras.
E de repente, não mais que de repente… Viu ali um novo sentido para a sua monótona vida! Decidiu fazer história, atuar, mostrar-se para o mundo, ser parte desta grande revolução e que estava prestes a acontecer no país. Não titubeou! Correu para entender o que se passava! Rapidinho tomou lado! Correu para comprar sua camiseta da seleção brasileira, um apito e uma boa corneta. Pronto… Estava todo paramentando para lutar pelo Brasil.
Daí para os plenos da luta foi um pulinho… Estava em todas as manifestações; fez vários amigos, descobriu coisas novas, tirou fotos com policiais, por fim… Relaxou um pouco! E não teve dúvidas, a saída é uma só: derrubar a presidente. Se sentia bem, estava seguro de que cumpria seu papel de cidadão. Finalmente, em quarenta e cinco anos de vida descobriu sua verdeira missão: salvar o país. E assumiu com muita sinceridade tal causa! Entre lágrimas e pronunciamentos tocantes afirmava que não era só por ele mas também por sua família, por Deus, pela pátria.
E emendava na denuncia: “Viu? Se a Petrobrás fosse privada não estaríamos passando por isso!”; “Com os militares não havia corrupção!”, “Culpa do PT!”, “Intervenção já!”. Sentia-se vivo, ativo, útil e o melhor: fazia história. Ahhhh… Como era bom fazer história! Militava entusiasmado nas redes sociais.
Não havia noite que não ia para a varanda da sua casa bater panelas; e o fazia com gosto e dedicação. Chegou a se desentender com seu vizinho, um detestável professor de história, logo comunista; mas sabia que não podia parar… Sua causa era a causa suprema: seu país.
Não percebera, no entanto, que sua doença avançava; ia estranhamente, emagrecendo; seus ombros iam se alargando, sua cintura ia desaparecendo e seu corpo ia se tornando uma coisa por demais emagrecida, retilínea.
Por outro lado, seu cotidiano passou a ser esse contagiante, febril e muito vivo combinado de atividades corriqueiras pelo fim da corrupção, pela queda da presidente e, é claro, pela assunção dos militares ao poder central. Teve a vez que, sempre muito empolgado, chegou a fazer uma lista de “elementos suspeitos e subversivos” do seu trabalho e encaminhar para a polícia federal. Segundo o mesmo, eram partes de certo, “exército vermelho e informal”. E pediu mesmo que seus pares fizessem do mesmo… Era preciso limpar o país destes “trapos vermelhos”, como sempre citava.
Defensor ardente do juiz Moro, estava certo de que, agora sim, o país estava sendo passado a limpo; mesmo sua mãe, senhora octogenária e fiandeira de tricô e crochê, já não o suportava com a alucinação obstinada e obsessiva de suas conversas; para ele, cassar a presidente da república, o registro do PT e prender Lula era a “trinca da sorte” e que iria liberar o país do “risco vermelho”, afinal, o Foro de São Paulo estava por detrás de tudo isso, a Venezuela chavista é aqui do lado e o MST continuava atuando. Medidas duras, portanto, para um contexto igualmente duro.
Naquela noite.. Naquela noite algo de muito estranho e bizarro iria, no entanto, lhe acontecer; já era tarde; em casa, enquanto assistia tranquilamente ao jornal da globo apresentado pelo vampiresco William Waack, repentinamente sentiu seu corpo tremer; seus músculos se contraírem; parecia convulsionar mas, de fato, não era isso! Suas mãos estavam como que comprimidas; um forte comichão entre seus dedos parecia lhe rasgar a pele parte por parte. Era como se os dedos estivessem sendo puxados para dentro das mãos; parecia mágica mas, de fato, seus dedos foram retraindo. Viu tudo aquilo!
Foram se encolhendo até sumirem dentro das mãos; e as mãos, impressionante… Seguiam o mesmo movimento em direção aos antebraços e que, por sua vez, escorreram plenos para dentro dos braços e estes, por fim, desapareceram misteriosamente sob as estruturas dos ombros. Era como se partes e membros estivessem se tornado retráteis como aquele personagem do cinema. Viu-se sem dedos, mãos e braços! “Que está acontecendo?”, pensou aterrorizado e sem sequer poder balbuciar um único “a”!
Seus ombros se ergueram em retidão precisa e pavorosa para a altura da cabeça; seu pescoço desapareceu; olhos, boca, orelhas e nariz foram se fechando sem deixar sinal, vestígio ou marca. Não haviam cabelos, pelos… Nada!
Foi definhando ali, bem ali naquele sofá; não podia gritar! Não podia girar para um lado ou outro; seu corpo foi afinando de um jeito tal que parecia ter passado por uma enorme massadeira de pão. Era muito estranho porque via tudo ao redor, sentia as coisas mas, completamente imóvel, não podia esboçar qualquer reação ante aquela força desconhecida e descomunal que lhe transformava dos pés a cabeça.
A pele enrijecia como se estivesse se transformado em madeira de lei, em muito bem aplainada madeira de lei; os poros sumiram; marcas de nascença, sinais corporais e cicatrizes também.
Seu corpo, no velho e clássico formato, sua bio-estrutura eram agora uma totalidade longitudinal completamente reta, endurecida, perfeitamente plana, alinhavada, simétrica e equivalente. Sem barriga, glúteos ou qualquer outra saliência corpórea. Identificou que nas extremidades do seu corpo passou a apresentar ângulos perfeitamente retos e duros. O que havia se tornado? O que havia acontecido com seu corpo? De fato, não sabia dizer! Se sabia vivo mas imóvel, perfeitamente estático e espantosa e curiosamente, gostava daquela sensação de equilíbrio, daquela harmonia e que jamais havia sentido em toda a sua miserável vida.
Naquele momento passou a ver coisas que não via; a sentir coisas que jamais havia sentido; adquiriu sensibilidades e sensações que nunca havia tido. Em que pese ver, sentir e perceber tudo o que o cercava sabia que não podia se mover ou expressar sua leveza e bem-estar. Seu sangue havia parado de circular e ele era uma totalidade rija e homogênea. Não havia pé, cabeça, membros, cavidades ou transpirações. Sua forma? Era um retângulo. Um enorme retângulo recostado sobre o sofá.
Ali ficou! Bem ali… Um típico personagem kafkiano; amanheceu no preciso lugar em que fora tomado por tal transformação. Pela manhã ainda viu sua esposa espantada sem saber do seu paradeiro e assustada com aquele amontoado em sua sala: um enorme objeto retangular sobre o sofá da sala em meio a panelas, uma camiseta da seleção brasileira, uma bíblia aberta no livro do apocalipse e uma muito amarrotada bandeira do Brasil. Depois disso… Ele desapareceu! Nunca mais fora visto! E essa… Essa é a incrível e espetacular história do homem… Do homem que virou porta.
(Ângelo Cavalcante, economista, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara)