Opinião

A vantagem de ser ausente

Redação DM

Publicado em 29 de junho de 2015 às 22:56 | Atualizado há 10 anos

 

Não se confunde ausência com omissão, que é fugir a um dever moral, mas talvez com isenção, que é independência de caráter. Às vezes, é preferível estar ausente ou isento ao invés de estar presente ou indiferente, por comodidade. Aos olhos alheios, nossa imagem por vezes se confunde ao preferirmos dizer a verdade, quando seria mais fácil dizer a mentira, que tem a máscara da omissão. Até mesmo a verdade precisa revestir-se de aparência como tal para não ser confundida com a presunção de falsa inocência.

Certa feita, na minha infância submissa, deixei de ser compreendido numa atitude inocente por não saber dizer a verdade na forma como deveria ser dita à minha própria mãe, eu que não tinha aprendido a fazer o jogo da aparência. É que a gente, nas férias escolares, tinha a obrigação de vigiar a plantação na roça, com a tarefa de espantar os pássaros invasores que vinham arrancar as sementes que começariam a brotar na terra fértil. A plantação se desenvolvia numa baixada extensa coberta de intensa mata que logo ao cair da tarde encobria a luz do sol.

A impressão que se tinha, de dentro da terra côncava, é que já era noite lá fora, quando até os pássaros amainavam seu canto escondendo-se nas copas escuras. Eu poderia simplesmente, ao sair da mata e tendo alcançado o cimo de um altiplano, ter ali esperado o solene por-do-sol para regressar a casa nobremente, na hora da ave-maria, ao invés de me expor à censura de ter negligenciado na minha tarefa de incompetente espantador de bicho, sendo assim recebido, como fui, pelos demais infantes interessados no meu fracasso.

No dia seguinte fiz de propósito. Deixei a noite cair tão fundo a ponto de não mais enxergar sequer os rastros de meus pés. Assim fui tateando pelo caminho de volta, tendo por GPS apenas as luzes dos vagalumes. Era preciso provar minha inocência e minha homência juvenil, com o meu orgulho de menino-homem. De repente ouvi uma voz que clamava aos prantos: – Meu filho! Meu filho! Oh meu Deus! Será que onça pegou meu filho inocente? Gostei de ouvir aquele clamor de minha mãe, procurando-me desesperada na escuridão. Senti-me amado como nunca. Num átimo recuperei minha autoestima e respondi ao seu apelo: – Mãe, aqui estou! Foi a minha primeira revelação da ausência.

Na nossa pequena cidade do sertão não havia linha aérea. Pousava eventualmente um avião da Força Aérea Brasileira numa cidade vizinha. Era o tempo das migrações dos jovens para a capital do estado, à busca de oportunidades e do desejado prosseguimento da vida estudantil, se não quiséssemos continuar como vigiadores de roças. Nos dias de possível pouso do avião da FAB, a gente se despedia logo cedo em casa, chorava as lágrimas necessárias para o ato e reservava num canto do coração a possível alegria da partida em busca do futuro. Nossas mães, sim, essas ficavam chorando de verdade.

Numa dessas ocasiões o avião não cumpriu a rota esperada e no fim de uma tarde frustrada, voltamos todos para casa com o desencanto da viagem perdida. Ao chegarmos, deparamos com nossas mães ainda chorando por nós, como ausentes. Foi a minha segunda revelação da ausência. E percebi que a vida é ambígua e nos faz rir ou chorar por razões que não compreendemos.

Daí em diante, compreendi a vantagem de ser ausente. Assim, não incomodamos. Não expomos nossos defeitos. Não competimos com ninguém. Podemos agir por controle remoto e não corremos o risco dos desencontros. Somos julgados com gratidão pelo bem que fazemos e passamos à categoria mítica dos isentos de cobranças e de ofensas. Assim passei a viver e a me ver como ausente. Quando chego, é aquela alegria, porque sabem que sou episódico. Já não vejo a morte como o fim, mas como a terceira revelação, da presença ausente.

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – Email: [email protected])

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