A vida não foi embora
Redação DM
Publicado em 1 de maio de 2016 às 01:08 | Atualizado há 9 anos
Na noite passada, deitou-se mais cedo. Não estava muito a fim nem mesmo de televisão. Os filmes que poderia ver nos diversos canais consultados – e eram muitos – estavam se repetindo há meses, e ele não estava disposto a reprises de emoções amarelecidas por já serem conhecidos os resultados.
Sentia-se tão acabrunhado com a situação que não ousava comentar sequer com a família. País engolfado em mentiras, atolado em dívidas, chafurdado em desonestidade, corrupção, economia numa queda inacreditável, negócios emperrados, pagamentos parados, mas as contas chegando, inexoravelmente, nas datas certas, todos os meses.
Olhava para um lado, para o outro, para frente e não conseguia divisar soluções nem a médio prazo.
Já imaginava situações como a perda de negócios fechados e em andamento, por absoluta impossibilidade financeira.
Horizonte sombrio levava a pensamentos mais ainda. Clima de excessivo calor aumentava a sensação de desconforto e derrota.
Noticiário de televisão mostrava aquelas intermináveis e repetitivas discussões, com apresentação de chavões e frases de efeito como se fossem grandes achados filosóficos, jurídicos ou econômicos e isto saído de mentes e bocas acostumadas apenas aos xingamentos e agressões verbais.
Vez por outra, uma cabeça realmente pensante, uma língua afiada em dizer verdades cortantes, respondidas com palavras de ordem… E isto dentro do Congresso Nacional, com absolutamente injustificáveis quase seiscentos membros titulares!!!
Ameaças de novos impostos e ou ampliação dos índices dos já existentes para “ajudar a economia do país” ( metáfora para encobrir a verdade que seria “ procurar tapar os rombos enormes causados pelo furto, pela má gestão e pela irresponsabilidade “ ).
A cabeça começou a girar em pensamentos confusos, misturados, desconexos…Não sabia mais como se comportar: se levantar-se e ir até à sala, ou até a varanda, ou tomar uma bebida qualquer, ou, enfim, impotente diante da situação, deitar-se e tentar dormir.
Acabou fazendo tudo isto e, finalmente, deitou-se.
Olhos fixos no teto escuro, não dormia. Também, pudera, não conseguia ver os carneirinhos pulando a cerca e contá-los até adormecer!
Só enxergava capetinhas vermelhos…da cor do fogo que os alimentava.
Mas acabou dormindo, vencido pelo cansaço.
Todavia no passar da noite para a madrugada o tempo mudou. Deve ter sido algum desses fenômenos que aquelas mulheres bonitas que enfeitam noticiários chatos tentam explicar, quando falam do tempo.
Acordou cedo e com frio.
Quando se deitara cobertor seria tortura, mas agora, uma necessidade.
Repassou o filme de ontem inteirinho em questão de segundos.
E se deu conta de que respirava, via as cores que se desenhavam no céu, podia se levantar e andar, e o sol, meio amedrontado, mostrava seus primeiros sinais.
Abriu a janela e viu que muitas pessoas já transitavam pela rua, indo para seus afazeres diários. A padaria, lá em baixo, já estava de portas abertas. Um cachorro insistente latia e depois uivava no fim da rua, mas alto o suficiente para incomodá-lo no oitavo andar, onde se situava seu apartamento.
Deu-se conta de que, embora todos os seus aborrecimentos, o Grande Doador da vida lhe concedera mais um dia!
Sentiu quão importante era estar vivo.
Fez as contas: tinha mais uma oportunidade de vinte e quatro horas para ser feliz, desde que soubesse escolher os meios e eles estavam à sua frente, gratuitos, dados por Deus.
Ajoelhou-se ao lado da cama e orou, compungido, agradecendo a Deus mais esta oportunidade, embora suas lamúrias e até ofensas.
E viu que a felicidade se faz minuto após minuto, hora após hora, dia após dia e depende muito mais de nós mesmos do que dos outros.
Sentiu que era melhor ter a seu lado o anjo da vida do que a mulher da foice.
E apenas balbuciou: Graças a Deus, a vida não foi embora!
(Getúlio Targino Lima, advogado, professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro da Associação Nacional de Escritores e da Academia Goiana de Letras. Email: [email protected])