Adeus, minha amiga!
Redação DM
Publicado em 19 de abril de 2017 às 03:55 | Atualizado há 8 anos
Há algum tempo, discorrendo sobre a ignorância como fonte geradora de todas as formas de preconceito, recordei de algumas passagens de partes importantes de minha vida experimentando uma plena doação que só as amizades sinceras são capazes de proporcionar. Foi a partir dessa experiência vivida, dessa amizade sentida ao lado de uma grande amiga, que pude desvencilhar-me de grande parte de meus preconceitos que tanto obnubilavam minha ideia de mundo, minha concepção de cultura, de povos.
Penso, entretanto, que a maior imprecisão da máxima que diz que “a ignorância é a mãe de todo preconceito” resida na impropriedade contextual da palavra “mãe”, considerando a sua sublimação, e, semanticamente, denota os mais elevados sentimentos. Portanto, inadequada para referir-se a algo negativo. Por esta razão, em profundo respeito a todas as mães, eu afirmo que a ignorância é a “origem” de todo preconceito.
Eu, por muito tempo, acreditei que qualquer pessoa que surgisse de algum lugar abaixo do Estreito de Gibraltar ou do Estreito de Bósforo, não passasse de um fanático ou radical muçulmano, adepto da cobiça e da violência, ignorante, desumano e de mentalidade primitiva. Essa ignorância é, muitas vezes, resultado de uma massificação de preconceitos que nos são inculcados. A concepção que a grande maioria de nós, os ocidentais, temos sobre os povos do Oriente-Médio e da Ásia é o resultado de ideias construídas ao longo da história, porém, sem sermos dotados do senso-crítico para as depuramos. Desde os relatos dos Templários, as invasões árabes na Europa, notadamente na Península Ibérica em suas guerras contra os Mouros, posteriormente com a Guerra-Fria – bipolarização político-ideológica entre Oriente e Ocidente -, até os dias mais contemporâneos, com a doutrina estadunidense da “Guerra ao Terror”, somo induzidos a acreditar que o Planeta possui uma linha imaginária entre bons e maus, e que nós somos os únicos civilizados.
Por muitas vezes pensei que a guerra entre aqueles povos em nada me tocava, me sensibilizava, pois os considerava todos iguais. Portanto, quanto mais se matassem melhor seria. Eram os maus destruindo a si próprios. Os interesses e disputas políticas e religiosas construíram em nós essa concepção. A vida prática, porém, ensinou-me muitas lições. Observo a eclosão violenta dos conflitos lançados pelos extremistas do Estado Islâmico, formado por radicais sunitas, e interesso-me, de maneira especial, pela situação da população curda. Esse povo, embora sua origem remonta milhares de anos, é muito pouco conhecido pelo Ocidente, principalmente por nós, brasileiros. Eles tiveram suas primeiras menções nos escritos cuneiformes dos sumérios, cerca de 3000 a. C., referindo-se às “terras de Karda”, nos montes Zagras-Tauros do norte e nordeste da Mesopotâmia. Embora seja um povo odiado e desprezado, considerado por muitos países, como a Turquia, como sendo “terrorista”, em 2001 cientistas israelenses, alemães e indianos descobriram que entre as várias comunidades judaicas os judeus asquenagi apresentam uma relação mais próxima com os curdos muçulmanos que com a população falante de línguas semíticas mais afastadas do sul da península arábica. Outro estudo mostra que o hablótipo modal Cohen é um marcador genético do norte do Oriente Médio que não é exclusivo dos judeus. Ou seja, o preconceito judeu contra os povos árabes e curdos não é apenas uma manifestação de ignorância, é também uma violência contra os próprios povos – originalmente – judeus. Os curdos estão espalhados por diversas regiões da Europa Oriental, pela Turquia, Síria, Irã e Iraque. Apesar da satanização que o Ocidente e Israel pregam contra o Irã, é lá que tanto curdos quanto judeus desfrutam de maior liberdade e respeito às suas culturas. No ano de 1988, por ocasião do encerramento da Guerra Irã-Iraque, foram utilizadas armas químicas por Saddam Hussein contra a população curda, na cidade de Hálabza, matando milhares de pessoas, a maioria civil, e afetando, geneticamente, outras milhares, nas gerações posteriores.
Atualmente, os curdos ocupam uma área praticamente inóspita, espremidos entre Turquia, Irã e Iraque. Por ser uma região montanhosa e extremamente árida, a barragem de Mossul é de importância vital para eles, pois fornece água e eletricidade a uma extensa região. O Estado Islâmico tem sido cruel com esse povo, ocupando aldeias, destruindo reservatórios de água, estuprando e vendendo crianças como escravas sexuais. Mulheres estavam sendo enterradas vivas. Com o apoio dos EUA e da Europa, essa barragem e a cidade de Kobane, na Síria, foram reconquistadas, após intensos confrontos contra os extremistas sunitas do Estado Islâmico. Em minhas andanças, a vida confrontou-me com meus preconceitos e, creio, uma das melhores lições de amizade e solidariedade tenha vindo de uma jovem mulher curda, na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde morei e trabalhei. Eu precisava ganhar dinheiro para poder cursar doutorado na Espanha, onde havia sido admitido. Porém, na Bélgica, onde eu morava, o que eu ganhava não era suficiente para sustentar a minha estada de seis meses na Espanha e arcar com as despesas da universidade. Fui, então, residir e trabalhar na Inglaterra, já que a Libra é mais valorizada que o Euro, o que possibilitou-me fazer as economias necessárias. Fui admitido como ajudante num restaurante extremamente movimentado, com trabalhos exaustivos, carga horária de até 12 horas ininterruptas. Sem vida social, sem amigos, vivendo só para trabalhar, fui tomado de profunda depressão e mal me alimentava.
Após alguns meses, começou a trabalhar comigo uma mulher alta, linhas do rosto definidas, bonita, porém, estampava na face e no olhar profunda tristeza, melancolia, sofrimento. Era Mayssa, uma refugiada curda, casada com um iraquiano que lhe surrava todos os dias. As marcas físicas da violência denunciavam suas agruras. Ela trabalhava chorando, falava só o essencial (com um inglês improvisado e até através de mímicas), era proibida pelo marido de comunicar-se com qualquer homem e de fazer amizade com outra mulher. Mayssa confiou tanto em mim que, contrariando a opressão do seu algoz, tornou-se minha melhor amiga. Quando sentia vontade, conversava comigo, sorria, fazia graça e abraçava-me, às vezes por carinho, às vezes para chorar suas dores, que eram tantas. Lembrava dos familiares que foram dizimados e contava-me que eles eram fascinados pelo Brasil, principalmente os sobrinhos e os irmãos caçulas, que guardavam fotos e imagens dos jogos da seleção brasileira de futebol. Segundo ela, era um luxo alguém da aldeia ter uma camisa verde e amarela. Ela gostava tanto de mim que se entristecia quando eu estava triste, chorava ao ver-me fazendo jeito de durão para não comer, uma forma minha de “protestar” contra a truculência e a exploração do dono do restaurante, um iraniano mercenário e ensandecido. Eu dizia que estava sem apetite, ela, então, fingia que ia recolher as vasilhas das mesas, que iria atender a algum cliente, e passava próximo ao tabuleiro para apanhar algumas barras de chocolate ou de cereais para que eu as comesse. “Querido, por favor, coma alguma coisa, faça isso por mim”? Às vezes, ela jogava com meus sentimentos, era uma tática que usava para mensurar minha amizade por ela, se eu também me importaria com ela: “Se você não comer hoje eu também não como”. Impossível resistir àquele misto de ordem e súplica.
Certa vez, Mayssa disse que tinha um segredo para contar-me, e que eu era o único em quem ela confiava, pois iria tomar uma decisão muito séria e importante para a vida dela e de seus filhos. Ela fugiu com os filhos e abandonou o marido. Foi morar com o seu irmão na Dinamarca, o único de sua família que sobreviveu após o ataque com armas químicas contra civis, no massacre de Halábza. Em seu último dia de trabalho, passamos o dia inteiro em silêncio, lábios inefáveis, mas olhares eloquentes e olhos marejados. Nossos olhares pareciam querer atrasar as horas, alongar o dia, apesar daquele ambiente de trabalho deplorável. Ao final do dia, a despedida: “Adeus querido amigo, cuide-se bem. Eu estarei bem. Por favor, nunca se esqueça de mim. Eu vou tê-lo sempre em meu coração”. Foram estas as últimas palavras que ouvi dela, enquanto apertava-me, aos prantos, com seu abraço sincero. A discriminação é falta de conhecimento, de vivência, de troca de experiências, de compartilhamento. É sentimento de não pertencimento. Aquela mulher estava ali, vinda de tão longe, para ensinar-me essa lição, semeando luz sobre minhas obscuras concepções acerca de pessoas que sequer as conhecia. E é assim em nossa sociedade. Muitos de nossos preconceitos são originados de nossas próprias limitações cognitivas e, por esta razão, optamos pelo simplismo, pelo senso-comum, e nem nos constrangemos de sermos injustos. Meus preconceitos tolos ficaram enterrados e esquecidos na escuridão de minhas ignorâncias que, com esforço, venho conseguindo suplantá-las.
Há poucos dias recebi, consternado, a confirmação de que a minha amiga tombou em campo de batalha quando lutava, na linha de frente, contra a organização terrorista Estado Islâmico. Morreu fazendo algo no qual acreditava, lutando em defesa de seu povo, de sua cultura, de seu território. Dedicou a sua vida em uma doação plena, em razão de seu enorme coração, repleto de bondade. Vou carregar comigo a ternura e o exemplo de amizade, da mulher humana e forte, que estará eternamente em meu coração e em minhas melhores lembranças. Adeus, minha amiga!