Opinião

Amnésia sertaneja, o causo do sertanejo que estava com o esquecimento encastoado

Diário da Manhã

Publicado em 16 de março de 2017 às 01:55 | Atualizado há 8 anos

A propósito de esquecimento, existe gente que carrega uma amnésia encastoada no juízo, como o causo que me vem à mente, ocorrido quando eu regulava meus oito a nove anos. Na verdade, a amnésia sertaneja vai mais por conta da indolência do que do próprio esquecimento.

Era um passatempo ficar encostado no balcão da “Casa Póvoa” assuntando meu pai despachar os fregueses, na maioria sertanejos que iam ali vender ouro em pó, couro de gato-do-mato e de veado, pena de ema e outras coisas do mato, pois na-quele tempo não havia Ibama pra fiscalizar, e a caça era demais.

Como farmacêutico prático, charlatão (manipulador de remédios) e comerciante, a ele era incumbido pela Campanha da Malária de distribuir de graça pro povo medicamentos do Governo: Aralém, Metoquina e outros remédios amargosos à base de quinino, para dar vencimento às febres das beiras paludosas do Itaboca, do Pintado e outros corgos do sertão. E o povo do mato já sabia que o remédio era por ele distribuído, e nos fins de semana iam os sertanejos buscar na mão dele os comprimidos que davam volta no mal de beira de corgo. Por imposição do controle, ele registrava num livro os dados do recebedores do remédio.

Um dia, entrou um velho conhecido, já useiro e vezeiro em panhar remédio pra sezão lá com ele. Meu pai foi botando no papel os dados do velho, da mulher e do filho único, que lhes nascera depois de muitos anos de ajuntamento, de sorte que pai e mãe tinham um fuá danado com o moleque, que lá ficara em casa incomodado com o impaludismo que não alisava ninguém.

– Qual é o nome do menino? – indagou o velho Liberato.

O velho deu um nome lá – Lico, Tico, Dico -, nem me mais e só sei que terminava em “ico”.

– E o nome de batismo? – voltou meu pai, que tinha um monte de gente perlongando o balcão, esperando a vez.

O velho botou a mão na boca, olhou pro teto, revirou o caroço do olho, cofiou o bigode, como se estivesse revirando a memória atrás de algo muito difícil de ser guardado. Meu pai, lápis na mão, debruçado no balcão, impacientava-se, mas o velho procurava ganhar tempo:

– Peraí, “Seo” Liberato, pois o nome dele t´aqui na ponta da língua. É um menininho já taludinho, ladino, com uns doze anos, cabelo escorrido… me ajuda na roça… – e com a mão esquerda na testa mostrava o tamanho do filho, estendendo a mão direita na horizontal.

– Francisco? – meu pai queria ajudar, lápis na mão e uma impacienciazinha já campeando o juízo, que ele não tinha um trisco de paciência.

O velho sertanejo, relembrando causos que envolviam a ladineza do rebento temporão, dizia que era um menino muito do esperto, ladino, bem mandado e modoso, mas não havia jeito de lembrar-lhe o nome.

Depois de dúzia e meia de sugestões de nome que meu pai lhe dera, o velho, como se tivesse tido um súbito estalo na cabeça, bateu a mão espalmada na testa e falou afobado:

– Lembrei. Lembrei, “Seo” Liberato: é Guilherme. Guilherme é o nome que tá no batistel. Assenta logo aí no papel, senão esqueço.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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