Opinião

Antonhão pé-de-janta

Redação DM

Publicado em 26 de junho de 2015 às 23:30 | Atualizado há 10 anos

 

Além das reminiscências de criança, devo a Antonhão Pé-de-Janta a inspiração de um conto, com que venci o XIII Concurso de Contos da Universidade Federal de Minas Gerais, em dezembro de 1978, que incluí no meu livro Besta-Fera e Outros Contos.

Já me lembro de Antonhão medindo as ruas do Duro, com aqueles pés enormes que lhe valeram o apelido, e cheio de intimidades e compadragens com os influentes da rua.

Na minha concepção de menino, não admitia que ele tivesse nascido, tido infância, crescido como gente normal; para mim, ele já nascera grande, enorme, esquelético, encurvado pela altura, preto, de nariz afilado e com os pezões rachados de tanto trilhar do Fundãozinho pra rua.

Alma branca, Antonhão era uma pomba sem fel, incapaz de levantar o braço contra qualquer vivente. A sua perdição era a cachaça, e a rocinha acanhada que plantava com a mulher, Loura, e a cunhada, Doza, mal mente dava para mear a seca, pois antes que as águas chegassem, seu minguado paiol não dava nem para semente do próximo plantio. Era mais grande que previdente o pobre Antonhão.

Quando bebia, limitava-se a dormir, muitas vezes debaixo das mungubeiras da porta lá de casa, de onde nada o fazia levantar-se. Quando a molecada o via esparramado no chão, começava a atenazar-lhe a paciência.

– Ei, Pé-de-Janta!

Ele se limitava a levantar com a ponta dos dedos a aba do chapéu de palha, grelar os olhos mortiços e avermelhados de pinga e voltar a dormir.

Quando, porém, a meninada gritava: “É-vêm os soldados!”, ele se recompunha e, de um salto, ganhava a Rua dos Rodrigues, rumo ao Fundãozinho. Isto porque, certa ocasião, em consequência de uma intriga urdida por Manoel de Joaquininha e Guducha de Genésio, cabo Gregório e João Soldado deram-lhe uma carreira, levando-o perseguido até depois do córrego da Maria dos Reis.

Aí, Antonhão passou uma temporada sem voltar à rua, nem mesmo para buscar a capanga de mescla que, no pega-pra-capar, ficara nas mãos de João Soldado, enquanto Antonhão levara no pescoço a marca da precipitada fuga traduzida numa assadura. Tempos depois, esclarecido o engano pelos próprios Manoel e Guducha, Antonhão pôde voltar a frequentar a rua.

De outra feita, embalado pela pinga e ferido nos brios pela companheiragem, meteu-se a valente (mas só por fora e de longe): quando viu o cabo Gregório surgir na ponta da rua, tirou o facão “Collins” e mostrou-o, retalhando o ar, como se provocando o cabo. Este, sentindo-se desafiado, pegou um soldado e começou a perseguir Antonhão, que ganhou o beco da igreja e afundou no mundo. O cabo também embicou atrás dele, que, acompanhado da cachorrinha magrela, seguiu ao rumo das chapadas da Abadia, sempre desafiando o cabo: quando via que a distância oferecia segurança, tirava o facão e retalhava o ar enquanto a autoridade parava; era só o cabo fazer menção de seguir, Antonhão tomava a iniciativa. Em certo ponto, um atalho encurtou o caminho dos perseguidores, que, estando-lhe quase aos calcanhares, obrigaram-no a recorrer a um capão fechado, onde se pôs a salvo. Mas só por enquanto, pois os ganidos da cachorrinha conspiraram contra ele, denunciando-lhe o esconderijo, sendo levado pro Duro, onde, após levar um sabão, foi liberado.

Seja pelo aperto passado, seja pela doença, que refletia um folguejar curto no peito seco que nem de passarinho, Antonhão passou uma temporada sem beber, causando estranheza em todo mundo, pois jamais ocorrera aquilo; pelo contrário, a cachaça fizera-o um carro de treitas: ninguém lhe fiava uma agulha enferrujada, se Loura não garantisse o pagamento; ultimamente, dera até para pedir água, beber e, à primeira distração, carregar o copo e trocar por uma dose de pinga.

Mas Antonhão parecia ter esconjurado a cachaça, e até passava de largo pelas bodegas, causando pasmo. Milagre, dizia o povo.

Certa madrugada, chega Antonhão e bate à janela de meu pai, em prantos, pedindo socorro: morrera-lhe o netinho, Erasmo, ofendido de jararacuçu. Mesmo sabendo ser Antonhão um velhaco, meu pai, seu compadre, condoeu-se de sua desgraça, levantando-se e indo até a “Loja Póvoa”, onde lhe forneceu uma alpercata arreada pra enterrar o neto e tecido para a mortalha do menino, e ainda fez minha mãe levantar-se de madrugada para costurar uma camisa de madrasto e uma calça de brim. Ele agradeceu chorando e prometendo que iria pagar, apesar da fama de treiteiro.

Ao meio-dia, chega à loja um pretinho dizendo-se o neto de Antonhão. Meu pai tomou informações e soube que ele estava bêbado na venda de Joaquininha. E foi até lá, para saber como conseguia dinheiro, pois Joaquininha era famosa por jamais fiar cachaça.

Antonhão trocara a pinga pela mortalha e pelas precatas do neto, que estava vivo e à sua procura.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

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