Opinião

As prisões da Lava-Jato

Redação DM

Publicado em 7 de março de 2017 às 02:21 | Atualizado há 8 anos

A presunção de inocência é um escudo tanto contra condenações como contra punições prematuras. Contra condenações injustas, a presunção de inocênia exige, para uma condenação criminal, prova categórica, acima de qualquer dúvida razoável. Segue-se o velho ditado de que é preferível ter vários culpados soltos a um único inocente condenado. Contra punições prematuras, significa que a prisão, pena moderna por excelência, deve seguir-se ao julgamento, e não procedê-lo. Na última perspectiva, o princípio também significa que as prisões antes do julgamento, ainda que não definitivo, as chamadas prisões preventivas, são excepcionais e devem ser longamente justificadas. Tem havido uma série de críticas e supostos abusos na decretação de prisões preventivas na Operação Lava-Jato. Escrevi esse artigo para esclarecer alguns aspectos delas.

Existem atualmente sete acusados presos preventivamente na Operação Lava-Jato sem que tenha havido julgamento por sentença na ação penal. O total das prisões preventivas decretadas é bem maior, 79, mas elas foram paulatinamente revogadas ou substituidas por sentenças condenatórias. Apesar das discussões em torno dessa substituição, são diferentes a situação do preso provisório não julgado e a do preso provisório já julgado e condenado. Setenta e nove prisões preventivas, em quase três anos, é um número significativo, mas outros casos de investigações rumorosas, como a Operação Mãos Limpas, na Itália, envolveram um número muito superior de prisões provisórias, cerca de 800 nos três primeiros anos, entre 1992 e 1994, somente em Milão. De forma similar, 79 prisões preventivas em quase três anos é um número muito menor de prisões preventivas decretadas em um ano em qualquer vara de inquéritos ou em varas de crime organizado em uma das grandes capitais brasileiras.

Não procede, portanto, a crítica genérica às prisões preventivas decretadas na Operação Lava-Jato, pelo menos considerando a quantidade delas.

Também não procede à critica a longa duração das prisões. Há pessoas presas, é verdade, desde março de 2014, mas nesses casosjá houve sentença condenatória e, em alguns deles, até mesmo o julgamento das apelações contra a sentença. Quanto aos presos provisórios ainda sem julgamento, as prisões têm no máximo alguns meses, o que não é algo extraordinário na prática judicial, e não raramente os julgamentos tardam pela própria atuação da defesa, por vezes interessada em atrasar para alegar junto a ouvidos sensíveis a demora excessiva da prisão provisória. Outra crítica recorrente é que se prende para obter confissões. Entretanto, a maioria dos acusados decidiu colaborar quando estava em liberdade, e há acusados presos que resolveram colaborar e há acusados presos que não colaboraram. Os dados não autorizam conclusão quanto a correlação necessária entre prisão e colaboração.

A questão real – e é necessário ser franco sobre isso – não é a quantidade, a duração ou as colaborações decorrentes, mas a qualidade das prisões, mais propriamente a qualidade dos presos provisórios. O problema não são as 79 prisões ou os atualmente sete presos sem julgamento, mas sim que se trata de presos ilustres. Por exemplo, um dirigente de empreiteira, um ex-ministro da Fazenda, um ex-governador e um ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mas, nesse caso, às críticas às prisões preventivas refletem, no fundo, o lamentável entendimento de que há pessoas acima da lei e de que ainda vivemos em uma sociedade de castas, distante de nós a igualdade republicana.

Mesmo considerando-se as 79 preventivas e o fato de elas envolverem presos ilustres, é necessário ter presente que a Opração Lava-Jato revelou, segundo casos já julgados, um esquema de corrupção sistêmica, no qual o pagamento de propinas em contratos públicos consistia na regra do jogo. A atividade delitiva durou anos e representou caráter repetido e serial, caracterizando, da parte dos envolvidos, natureza profissional. Para imrroper o ciclo delitivo, a prisão preventiva foi decretada de modo a  proteger a ordem pública, especificamente a sociedade, outros indivíduos e os cofres públicos da prática serial e reiterada desses crimes.

Ocasionalmente, foram invocados outros fundamentos, como a necessidade de prevenir fuga ou a dissipação do produto do crime, ou de proteger a investigação contra a distruição e manipulação de provas. Cabe, nessa linha, lembrar que todos os quatro diretores da Petrobras presos preventivamente – e já condenados – mantinham milhões de dólares em contas secretas no exterior, não sendo possível ignorar, nesse caso, o risco de que fugissem ou, pior, de que foragidos no exterior, ficassem com o produto do crime. Apesar das genéricas críticas a supostos excessos nas prisões preventivas, a análise circustanciada revelam que todas estavam bem justificadas.

Para ficar um exemplo, foi decretada, em junho de 2015, a prisão preventiva de dirigentes de um grande grupo empresarial. Os fundamentos foram diversos, mas a garantia da ordem pública estava entre eles. Posteriormente, tais dirigentes foram condenados criminalmente, embora com recursos pendentes. As críticas a essas prisões foram severas, tanto pelas partes quanto por interessados ou desinteressados, que aportaram o suposto exagero da medida diante da prisão de “pessoas conhecidas”. Posteriormente, dirigentes desse grupo empresarial resolveram colaborar com a Justiça e admitiram o pagamento sistemático de propinas não só no Brasil, isso por anos, mas também em diversos países do exterior, bem como a participação em ajustes fraudulentos de licitações da Petrobras. Mais do que isso: confirmaram a existência no grupo empresarial de setor próprio encarregado de pagamento de propina (Departamento de Operações Estruturadas) e que este permaneceu funcionando mesmo durante as investigações da Lava -Jato, tendo sido desmantelado apenas com a prisão preventiva dos dirigentes, em junho de 2015.

O caso é bem ilustrativo do equívoco das críticas, pois o tempo confirmou ainda mais o acerto da prisão.  Foi a prisão preventiva, em junho de 2015, que causou o desmantelamento do departamento de propinas do grupo empresarial, interrompendo a continuidade da prática de sérios crimes de corrupção.  Assim não fosse, o departamento da propina ainda estaria em plena atividade. O tempo confirmou que não houve nenhuma violação da presunção de inocência na prisão preventiva de pessoas culpadas e que persistiam na prática profissional de crimes.

Isso não significa que a prisão preventiva pode ser vulgarizada, mas ilustra que, em um quadro de corrupção sistêmica, com prática serial, reiterada e profissional de crimes sérios. É preciso que a Justiça, na forma do direito, aja com a firmeza necessária e que, presentes boas provas, imponha a prisão preventiva para interromper o ciclo deletivo, sem se importar com o poder político e econômico dos envolvidos.

Se a firmeza que a dimensão dos crimes descobertos reclama não vier do Judiciário, que tem o dever de zelar pelo respeito às leis, não virá de nenhum outro lugar.

Enfi, críticas à atuação do Poder Judiciário são em bem-vindas, pois nenhuma atividade pública deve ser imune a elas. Entretanto, as críticas genéricas às prisões preventivas na Lava-Jato não aparentam ser consistentes com os motivos usualmente invocados pelos seus atores. Admita-se que é possível que, para a parte minoritária dos críticos, os motivos reais sejam outros, como a aludida qualdade dos presos ou algum desejo inconfesso de retornar aos status quo de corrupção e impunidade, mas, com esses, nem sequer é viável debater, pois tais argumentos são incompatíveis com os majestosos princípios da liberdade, da igualdade e da moralidade pública consagrados pela Constituição brasileira.

 

(Sergio Moro, juiz federal da 13° Vara Criminal em Curitiba, responsável pela condução da Lava-Jato)

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