As “reminiscências” do Raimundo – V
Diário da Manhã
Publicado em 17 de novembro de 2017 às 23:15 | Atualizado há 7 anosNuma dessas frenéticas disputas por serviço de bagageiro, quando chegava ao porto um daqueles grandes barcos, motor de centro, e de alta potência, atracou até um pouco longe da margem. A maioria era de embarcações de médio porte, os ‘pentas’(motor 12 ‘Archimedes’ era na popa). O barco, porque de grande capacidade, tanto de passageiros como de mercadoria, não chegava bem perto da margem. Entrei n’água, subi na embarcação, e entrei no porão, bem no centro dele, por onde passava a chaminé. Sem perceber, e com a pressa que eu estava, atraquei minha mão na chaminé, que avermelhou toda, e doía muito. E, para complicar ainda mais, para aplacar aquela doar, no meu entendimento, pulei dentro d’água para molhar a mão e ver se a dor diminuía. Todavia, a dor somente aumentava a pele de minha mão quase que soltava. Aquela mão ainda ficou inchada e colorida durante uns bons dias. Mas nada aconteceu de maiores conseqüências. Fiquei sabendo, depois, que não se podia molhar uma queimadura com água fria. Mas essa aprendizagem só servia para outra oportunidade, caso houvesse. Eu faria tudo para tal fato não mais se repetir, como, realmente, esse lamentável descuido seria o único. Aquele dia ficou prejudicado quanto ao serviço de carregar bagagem. Onde também eu procurava ‘serviço de carregador de bagagens’, era no Aeroporto. Eu não podia ver um avião sobrevoando a cidade, que eu já corria para lá, à procura daquele ‘trabalho especializado’, – transporte de bagagens. E o Aeroporto, como a maioria deles, ficava bem longe do centro da cidade. Era longe o trajeto até os hotéis, pensões da cidade e casas residenciais. Com esses pequenos serviços, eu ganhava meu dinheirinho, que me proporcionava recursos suficientes para meus pequenos gastos: compra de guloseimas (doces dos mais variados), bananas, – minha comida preferida, balinhas, refrigerantes, pagava os ‘tempos’ de sinuca, – vício que Papai detestava. Essa sinuca ficava num bar, na rota da ‘biquinha’, aonde eu ia buscar água. Não raro, na passagem pelo Bar, eu botava as latas ao chão, e corria para, rapidamente, jogar algumas partidas. Com isso, eu descansava um pouco, e me divertia.
Eu também tinha como atividade remunerada, carregar água para alguns vizinhos nossos, tais como ‘madrinha’ Estolina, ‘seu’ Raimundo Lacer, Dona Joanice na Rua lá de Casa e para a pensão de Dona Lourdes, numa Rua mais próxima do Rio, também próxima do Bar da Sinuca, do ‘seu’ Bazar. De acordo com a quantidade de água que eu fornecesse, era o valor maior ou menor acertado. Eu sei que, na pensão de Dona Lourdes, o valor era maior, porque, por ser uma pensão, gastava-se mais água. Não está na minha memória quantas latas d’água eu fornecia a cada uma dessas famílias. Mas o certo é que eu dava várias viagens com latas de 30 a 40 cada, para encher os potes dessas residências. Esse serviço me dava um ganho razoável. E, como sempre, esse trabalho diário não me atrapalhava na Escola. Eu queria era ganhar meu dinheirão, sem me prejudicar na Escola. Era com esse ganho que eu comprava aquele cigarrinho barato, os fósforos e as balinhas, quando eu ia buscar lenha, na tentativa de aprender a fumar, o que, felizmente, não consegui. Mesmo porque, no trajeto do meu intento, fui desestimulado por pessoas responsáveis a prosseguir naquela caminhada sem futuro. Para meu bem.
Um dia, surgiu uma oportunidade que eu não pude rejeitar: Transportar, de barco, uma carga de cal de Couto Magalhães/GO, cidade do outro lado do Rio, em frente à cidade de Conceição do Araguaia-PA.
Pois bem. Com a minha inocência, típica ainda daquela idade, e mesmo na ignorância dos riscos de certos serviços, enfrentei aquela tarefa: Eu e outros rapazolas de minha idade, cerca de 14 anos. Ninguém me advertiu da insalubridade daquela tarefa. Assim é que a gente buscava a cal num galpão próximo ao porto, num caixote de carregar latas de querosene, com capacidade de 40-kg, só de conteúdo. A caixa pesava mais uns 15-kg. Claro que eu não enchia todo o caixote. Mas vinha com bastante cal. Eu, então, com aquela caixa pesada no ombro, descarregava-o no barco. Acontece que, para chegar ao porão do barco, que era grande, e por isto não chegava bem perto da margem, a gente tinha que entrar n’água. Essa água vinha até as coxas da gente. Geralmente, estávamos de calção e sem camisa. O ombro estava desprotegido daquele produto corrosivo, o calcário. E, dessa maneira, desprotegido, trabalhei quase que o dia inteiro. Vim almoçar, em casa, à tardezinha, com uma fome indescritível, em plena fase de crescimento.
Observei, já no mesmo dia, ao final das tarefas executadas, que meu ombro e minhas coxas, principalmente no lugar em que eu apoiava o caixote para despejar a cal dentro do barco, estavam muito vermelhos. Mas até aí, nada de mais. Porém, no dia seguinte, e a partir dele, a pele do ombro e das coxas começou a mostrar pertinaz irritação. O vermelhão continuava, cada vez mais forte. Todavia, com o passar dos dias, uma semana mais ou menos, todo o meu ombro esquerdo, como as minhas coxas, soltaram toda a pele, descascaram por inteiro. Parecia camaleão trocada a pele. Foi uma coisa inesperada, com o que eu não contava.
Diante disso, nunca mais me prontifiquei a trabalhar nesse tipo de serviço, a única vez que um trabalho me deixou uma lembrança desagradável, de ganho que não compensou. Mesmo assim, não me lastimei. Queria ganhar meu dinheirinho. Fui, ganhei, embora muito dolorido e sofrido.
Importante, porém, aqui realçar que esses pequenos serviços remunerados que eu fazia, eram sempre realizados quando eu não tinha mais aulas, naquele dia, fins de semana e feriados. Jamais faltei a minhas aulas para a realização desse tipo de atividade, mesmo porque Papai ou ‘madrinha’ em sua ausência, não me permitiria cometer tamanha falta.
Agora, eu quero, aqui, dizer que havia duas atividades que eu não gostava de realizar: Uma, eu até fazia porque era mandado, e era quase um meio de vida, um ganha-pão para nossa casa: ‘Madrinha’, além das costuras que realizava para minhas irmãs, e para a irmã dela, a Belsinha, fazia bolos para vender. Com as costuras para os de casa, ela evitava despesas com o nosso vestuário; e com os bolos, ela apurava um dinheirinho para algumas despesas, na ausência de Papai, que ficava ausente por suas atividades de Agrimensura, – medição de terras nas matas do Pará. “Madrinha’ era muito trabalhadora, e não reclamava dessas suas atividades domésticas.
Eu saia à Rua para vender esses bolos. Se eu pudesse, eu compraria tudo e jogaria fora os bolos, e lhe daria o dinheiro, como se eu os tivesse vendido. Mas eu não podia fazer aquilo. Não porque eu não tivesse aquele dinheiro, mas porque seria um desprezo com aquele trabalho tão abençoado, de minha ‘madrinha’ que, com muito carinho, fazia aqueles bolos tão bem feitos, com muito capricho. Seria um ato desprezível, abominável até, de minha parte, pois eu já tinha esse discernimento. Saia vendendo, e quase sempre vendia tudo, porque eram bem feitos e saborosos. Valia a pena, e valeu.Há que reconhecer que minha madrasta foi uma grande companheira para Papai, naquela quadra de sua vida. Dentro de suas limitações, ela muito fazia para ajudar Papai nas despesas domésticas, para o que ela contribuía com as costuras, – pois era muito boa costureira, – a maioria para minhas irmãs, e algumas para mim, também. E como muito prendada na feitura de quitandas, bolos e doces, ela também procurava apurar um dinheirinho com essas iguarias, e os fazia para vender. É claro que não apurava grandes valores, mas tudo servia para reforçar o orçamento doméstico, – era benéfico, aquele santo dinheirinho.
E além de ela fazer essas guloseimas para vender, tendo eu como vendedor ambulante, ela era muito econômica nos gastos da casa, incluindo, aí, os gastos consigo mesma.
Há que reconhecer que minha madrasta foi uma grande companheira para Papai.
Outra atividade que eu nunca fiz, nem gostaria de ter feito, era o ofício de engraxate. Nem os meus sapatos eu engraxava. Eu pagava a esses garotos para fazê-lo, – engraxar meu único par de sapatos. É que eu considerava aquela atividade muito humilhante para mim, – engraxar sapatos dos outros, – abaixar-me aos pés dos outros… Aquilo não era para mim. E assim é que nunca pratiquei aquela atividade. Não por orgulho, nem soberba, mas eu não gostava de realizar aquela tarefa. Faria tudo, se fosse o caso, menos engraxar sapatos dos outros. Eu ganhava dinheiro em outras atividades, exatamente para pagar aquilo que fosse do meu gosto.
Registro essas minhas atitudes não para me vangloriar, nem me engrandecer, mas para demonstrar que o homem já traz, de pequeno, o seu caráter que pode até não ser dos mais louváveis, – como esse tolo orgulho meu. Por que eu não podia realizar essas atividades, que os outros podiam? Os outros seriam diminuídos por realizá-las? Claro que não! Mas a gente traz do berço essa maneira de agir, esse comportamento singular. Cabe-nos, com o tempo, e a convivência junto à sociedade, nos moldar e nos acertar com os semelhantes. Não é modificar a personalidade, porque nós não a mudamos, na raiz, na sua essência. Mas o nosso comportamento, até certo ponto, pode e deve ser modificado. Para isso, é que estudamos e convivemos com outras pessoas. Só os animais irracionais é que não mudam em nada o seu comportamento, o modo de viver e de agir, porque são irracionais, não pensam, diferentemente de nós, seres humanos.
Naquela cidade, quase tudo era primitivo, ‘verbi gratia’, o beneficiamento do arroz e a moagem do café para uso doméstico. Em nossa casa, o arroz era pilado, quer por uma pessoa, quer por uma dupla, ou por três pessoas. Eu quase sempre participava desse trabalho, ajudando minhas irmãs, e, às vezes, também o ‘Zezinho’, cunhado de Papai, irmão de ‘Madrinha’ Afra. Ele morou conosco uns bons tempos, em épocas diversas. Dele, tenho boas lembranças. Era uma boa pessoa. Temperamento dócil, como, aliás, o eram todos os irmãos de ‘Madrinha’, com quem convivi. Era interessante a cadência das mãos de pilão, com que eram executadas essas tarefas. Pilando duas ou três pessoas, simultaneamente, eram um, dois, três, – um, dois, três, e assim por diante. Em pouco tempo, o arroz estava pilado. Era só assoprar e catar as ‘escolhas’, que sempre ficavam em abundância. As ‘escolhas’ eram os grãos de arroz não descascados. Mas tudo aquilo era feito com muita maestria pelas meninas ou pelas mulheres que cuidavam da cozinha. Havia casas que tinham pilão para arroz e pilão para café. Em nossa casa, o pilão tinha duas bocas: Uma para pilar o arroz, e outra para pilar o café. Como o café era mais fácil de ser pilado, porque já estava torrado, não precisava mais que uma pessoa para pilá-lo. A maioria das casas daquela região usava torrar o café com rapadura raspada. Os grãos ficavam, ao serem torrados, todos pregadinhos uns aos outros, por causa do melado da rapadura. Era um café muito gostoso, torrado desta maneira. Essa tarefa de pilar era, também, muitas vezes, executa por mim. Estas eram algumas das atividades que não estavam entre aquelas que me foram atribuídas, no começo, a cada um de nós. Eram tarefas executadas por qualquer um de nós, – o que tivesse mais tempo, naquela hora: Ou por mim, ou por alguma de minhas irmãs.
A colheita do arroz ainda no cacho. Quando o arroz da safra anterior já tinha acabado, e na cidade ele tinha ficado escasso, tinha-se uma maneira de não ficar sem aquele produto. A essa altura, com o arroz de nossa plantação, já de cacho madurando, e ainda não em ponto de colheita, mais precisamente um cata cacho. Ia-se àquela pequena lavoura, já amarelando, e colhia-se com uma pequena faca, ou mesmo um canivete, os cachos mais maduros, mas ainda com algumas rajas esverdeadas. Debulhava-se, depois, os cachos de arroz, que, via de regra, não eram em grande quantidade. Colhia-se o suficiente pra uma ou duas refeições. Aquele arroz, debulhado, levava-se à panela quente, torrava-se (mais que o simples secar), e ficava até com um bom cheiro. Depois de bem seco, levava-se ao pilão, e pilava-o. Os grãozinhos descascados ficavam até com uma cor um pouco escura, tostados. E o arroz cozido daquele jeito, dava um sabor todo especial. Muito saboroso mesmo!
Essa prática não era corriqueira. Era uma prática esporádica, mas que, sempre que necessário, recorria-se a esse expediente. Era sinal de escassez daquele alimento. As lavouras, tanto as de arroz como as de milho, eram de pequenas áreas em toda a região. Era a época das roças de toco, plantio com a enxada, fechamento das covas com os pés e as colheitas, como natural para a época, manuais. A debulha do milho era, via de regra, manual, espiga por espiga. Era, assim, quando se tratava de uso caseiro ou para as aves. Para os porcos, jogava-se a espiga não despalhada. Para os animais de serviço, quando sobrava, dava-se o milho em grãos e, não raras vezes, a rapadura com farinha, alimento muito nutritivo, substancioso e energético.
Quanto ao trabalho na roça, Papai, consciente de seus objetivos conosco, nunca nos desviava daquelas atribuições naquela cidade: Estudar, estudar, estudar. Acontece que, nas férias, ou mesmo em alguns feriados e fins de semana, ele nos levava, – eu e, embora muito raramente, – algumas das meninas, para fazer alguns trabalhos leves, – ajudar a plantar arroz e milho.
Inicialmente, a plantação era feita à base de enxada, com a qual se faziam as covas. Uns saiam na frente, abrindo as covas, outros atrás jogando a semente, e um terceiro seguia tapando as covas, jogando a terra com o peito do pé. E assim passávamos uns poucos dias na roça. Quando a pequena lavoura estava já cacheando, – o arroz, ou na boneca ou espiga, no caso do milho, – o trabalho era espantar os periquitos, papagaios, ou pássaros-pretos, ou mesmo as araras. Pois que, se deixasse, essas aves danificariam toda a plantação. Essa plantação era de pequena monta para a passarada que vinha em bandos. Era deixar o trabalho de plantio e zelo (capina), iria todo por água abaixo. Seria um prejuízo enorme.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])