As “reminiscências” do Raimundo X
Diário da Manhã
Publicado em 22 de dezembro de 2017 às 22:42 | Atualizado há 7 anos‘O Aprendizado da Natação’ – Quando cheguei a Conceição do Araguaia, eu ainda não sabia nadar, não obstante as várias tentativas que fiz, ainda lá, no Uruçuí – engolindo piabinhas vivas, etc.
Foi somente quando já morava em Conceição do Araguaia, e naquele Rio, que consegui realizar aquele meu intento. E olhe que era um Rio muito perigoso, até mesmo para quem já sabia nadar. E, por ironia do Destino, foi ali que me tornei um ‘peixinho’: Aprendi a nadar, e fazia misérias naquele Rio, com a minha canoinha, e outras peraltices mais naquele mar d’água.
O Rio Araguaia, onde aprendi a nadar, era o grande divertimento da meninada. A cidade de Conceição do Araguaia, muito quente, a gente tinha, até por necessidade, que se banhar várias vezes ao dia. A gente nadava sempre, não se falava em natação, mas era um exercício muito sadio. Vivia sempre de calção, preparado para o banho. Banhava-me, nem tirava o calção para secar. Enxugava no próprio corpo.
A gente ficava, quase sempre, o dia inteiro, só de calção, pronto para um mergulho. Nos finais de semana, é que a gente ficava mais arrumadinho, uma roupa melhorzinha. Alça comprida, pronto para alguma matinê dançante. Era dia de folga de minhas outras atividades.
‘Andar de canoa’ – Era uma brincadeira de que eu gostava muito. Papai comprou-a, e me deu como instrumento de trabalho, como já demonstrado. Mas eu a tinha, também, para outra atividade: o divertimento. Eu ia tomar banho no meio do rio. Já havia aprendido a nadar. E nadava até relativamente bem, o suficiente para não temer as profundezas do grande, largo, majestoso Rio Araguaia. Eu pegava meu remo, entrava na minha modesta embarcação, e me dirigia para o meio do rio. No período das cheias, ele atingia, de frente à nossa cidade, uma largura de uns 3 Km. E lá no meio do Rio, eu largava o remo n’agua, emborcava (virava) a canoa, que ficava de fundo para cima. Eu mergulhava por baixo dela e voltava à superfície d’água, já dentro da canoa virada. Tinha a canoa como cobertura. Dentro daquele espaço com vácuo, sem água, eu segurava nas laterais da canoa, erguia a cabeça até o nariz ficar naquele vácuo dentro da canoa virada, e descia rio abaixo, por bastante tempo, nadando em pé, debaixo dela, e descia o Rio por uma longa distância. Depois, eu a desemborcava e, nadando, buscava e pegava meu remo, de novo. A seguir, tirava a água da canoa, balançando-a de um lado para o outro, até diminuir a água que estava dentro. Daí, eu entrava no meu transporte e, com o remo, eu terminava esgotando toda a água de dentro dela. Após, retomava a navegação, mas já em direção à margem do nosso lado, para a cidade. Isso eu repetia, não com muita freqüência, mas sempre que voltava a vontade de praticar aquele esporte.
‘Finca’ – Eu também brincava de ‘finca’, pequena peça de arame duro, resistente, pontiaguda e, com uma pequena dobra na parte superior. Para fazê-la, pegava-se um ferro de uns 20 cm, mais ou menos, dobrado num dos lados, com pelo menos três dedos, para apoio do polegar e do dedo indicador. Fazia-se um triângulo na areia, e arrumava-se um parceiro. Jogava-se aquela peça na areia ou terreno mole, onde a ‘finca’ se fixava. Cada jogador partia de um vértice. Em seguida, fixava-se essa ‘finca’no outro ponto, e o parceiro, também. Acontece que o objetivo da brincadeira era o parceiro bloquear a passagem para o outro. Ou seja, não permitir que o seu rival continuasse riscando, pois a sua saída estava bloqueada. Quando um deles conseguia esse bloqueio, era o vencedor da partida.
‘Aro de Arame’ – Roda de arame era outro divertimento muito engraçado. Só que não se, tinha competidor. Pegava-se um arame resistente, fazia-se um círculo, roda de uns 30 cm de diâmetro, mais ou menos, e, com uma pequena haste de arame, com um gancho na extremidade inferior, era em forma de ‘n’, e tinha-se que manter aquela roda em pé, fazê-la girar, e com aquela haste, tínhamos que mantê-la girando, e com até certa velocidade, conduzida e equilibrada com aquela haste. E havia hora que tínhamos que andar com uma velocidade acelerada e, não raras vezes, até correndo. O mais importante era a gente sair pela cidade, girando aquela roda de arame, desvencilhando-se dos obstáculos. Era esse o desafio: Ela, a roda, não podia cair. O que, fatalmente, acontecia, se andássemos muito devagar, ou se encontrasse um obstáculo incontornável. E quanto mais tempo a gente ficava com aquele brinquedo em movimento, maior era o sinal da grande habilidade no equilíbrio. E olha que a gente passava por certos obstáculos, e não podia deixar aquela roda cair. Ela podia até pular os buracos ou pequenos desníveis , mas a gente tinha que, logo em seguida, colocar o instrumento condutor, a haste em que a gente equilibrava aquela roda.
‘O Pião’ – Era um brinquedo muito utilizado pela meninada. Havia disputa entre dupla de jogadores. Mas nunca fui muito bom nesse tipo de brincadeira.
‘Jogo das Castanhas’ – Na época da safra do caju, guardavam-se as castanhas, e procurava-se um companheiro para jogar com uma bola de gude (de vidro e, para nós, de lá, as ‘petecas’). E com aquelas ‘petecas’, fazia-se o jogo. Jogava-se uma na outra. Quem mais acertasse no parceiro, ia ganhando castanhas.
Depois de certo tempo no jogo, às vezes até dias, juntavam-se as castanhas ganhas, e ia-se ‘queimar’, ou melhor, usá-las numa folha de ‘flandre’ (hoje, folha de ‘zinco’) de uma lata de 20 litros verticalmente cortada.
‘Queima de Castanhas’ – Não só as ganhas nesses jogos, mas também as outras ganhas nesses jogos, extraídas dos cajus consumidos em casa, depois de juntar uma certa quantidade, queimava-se ou assava-se, que é a mesma coisa. E aí, deliciava-se com aquela fartura de castanhas assadas. Assim, eram consumidas de imediato, com os companheiros, ou mesmo em casa, ‘Pernas de Pau’ – Tínhamos, também, esse divertimento que eram duas peças, com uma pequena plataforma, na parte inferior, para se apoiar o peito do pé. As peças eram de madeira de boa qualidade para não quebrar. Eram grandes, porque tínhamos que pegar na parte superior delas com as duas mãos, com as quais as movimentávamos nas passadas. A gente subia naquela pequena plataforma, onde se apoiava o peito do pé. Prendia a vara os dois dedos maiores, e ia dando os passos – toc, toc, toc… E andavam-se longas distâncias sem botar os pés no chão. A gente treinava tanto que se andava, em grande parte da cidade em cima daquelas plataformas. Inicialmente, entrem os dedos, fazia muitos calos. Com o passar do tempo, o couro ia calejando e engrossando, a ponto de não doer mais. O calo ficava permanente, mas qualquer dolorimento. Pegavam-se duas varas longas, mais ou menos do tamanho de uma pessoa adulta. Colocava-se uma ‘plataforma’ em cada um, geralmente do pé de uma pessoa adulta, encaixava-se aquela vara comprida entre os dois primeiros dedos do pé, e saía-se andando pela cidade, todo garboso, sem pisar no chão. Geralmente, andava-se com outra pessoa, um colega. Era um ótimo divertimento.
‘Peteca I’: As ‘petecas’ são as bolas de gude daqui. Jogava-se, também, com essas petecas para ganhar essas pequenas bolinhas. Fazia-se um pequeno buraco no chão e, geralmente, jogava-se de dois parceiros. O objetivo consistia em jogar para dentro daquele buraco a bolinha do adversário. Jogava-se com o dedo polegar e a bolinha apoiada nos outros dois dedos, – o indicador e o dedo médio. Ganhava aquele que colocasse dentro do buraco a bola colocada em jogo para ser emburacada. Ganhava aquele que conseguisse colocá-la dentro do pequeno buraco.
‘Peteca II’: Havia outro jogo que se jogava em duplas. Era uma pequena bola de couro, ou de palha de milho, cheia de terra, e, na parte superior, havia penas de galinha, ou de outras aves. De sorte que, jogada em direção ao parceiro, aquelas penas ficavam sempre para cima, e o fundo dela sempre para baixo, onde se batia com a palma da mão e a fazia levantar vôo, e o companheiro de jogo não podia deixá-la cair no chão. Aquele que a deixasse cair de seu lado, perdia pontos. Este pequeno brinquedo era também chamado de ‘peteca’.
‘ Danças’ – Divertimento de gente mais madura, de que eu muito gostava: Dançar. Foi-me difícil aprender. Nem dançava muito bem… As moças não gostavam de dançar com rapazes que não sabiam dançar… Como, então, eu iria aprender? Lá, na cidade, não havia escola de dança. Era difícil, a situação. A gente ia aos bailes, uns até não muito recomendáveis para moças de família. Nesses bailes de mulheres mais maduras e mais experientes na vida, até eu conseguia par. Não era muito enjeitado. Parece que aquelas ‘mulheres da vida’ eram mais compreensíveis com a molecada, os aprendizes. Mas os ‘bailes de sociedade’, nas matinês, durante o dia, nas casas de família, os principiantes eram mais rejeitados.
E a coisa era até humilhante, pois Você procurava aquela moça para dançar, e ela desconversava. Dizia que já estrava cansada, já tinha dançado bastante. Grande desculpa! Eu sabia que é porque eu não era o par ideal. Era ‘um perna dura’, ou seja, não sabia dançar. Muitas eram cruéis. Não queriam nem saber de sua decepção. E assim eu ia, aos tranco e barrancos, tentando aprender a dançar. Não desistia. E de festa em festa, principalmente em festas escolares, quando a cidade se enchia de moças e rapazes que estudavam fora, as possibilidades de dançar aumentavam. E, dessa forma, aprendi alguma coisa. Não digo que sou um exímio dançarino, mas dá para satisfazer o meu ego. Acho que cheguei ao estágio de não passar vergonha, em baile.
‘O Currupio’ – Essa brincadeira era muito usual na meninada daquela época. Tanto os meninos, quanto as meninas.
Aquele brinquedo era constituído de uma esfera, geralmente de casco de cabaça, de aproximadamente 6 cm de diâmetro. Não tinha dimensão definida, para ficar mais ‘bonitinho’ era todo ‘denteado’. No centro, tinha dois furos por onde era introduzido um cordão duplo, de tamanho aproximado de 15 a 20 cm. Esse cordão duplo era colocado nos dedos polegar e indicador e flexionando com ambas as mãos, aquela esfera girava, alternadamente, da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita. A velocidade com que a gente girava o ‘currupio’, fazia com que fosse visto como algo transparente. E cada um tinha o seu. Não era jogo de competição. Podia-se brincar até individualmente. E com aquela brincadeira, demonstrava-se que éramos felizes. Criança que brinca é criança feliz! Adolescente, também! Apesar de já trabalharmos em casa, naquela idade – dos 11 anos em diante – estudávamos e brincávamos, tipo um zunido, cada vez que rodava para a frente, e quanto voltava para trás.
‘Barqinhos de talo de Buriti’ – Falar de tantos brinquedos e não falar dos ‘barquinhos de talo de buriti’, a gente que era ribeirinho, e de um belo rio – o Rio Araguaia – seria desprezar uma das diversões mais típicas daquela região. Eu não tinha muito pendor para trabalhos manuais. Consequentemente, não era grande fabricante daquelas embarcações. Tinha colegas com mais facilidade. Os barcos eram réplicas das embarcações que por ali aportavam. Eram os barcos de popa, – aqueles cujos motores eram instalados na parte trazeira, os médios, e os barcos de centro, que eram muito maiores. Aqueles com motores instalados no centro da embarcação tinham até chaminé.
Os talos de buriti eram descascados, e aquela casca servia para o fabrico dos pregos, ou seja, todo o material empregado era só o talo de buriti. E nós íamos ao rio e, com um cordão amarrado à proa, puxávamos aquelas embarcações que produziam uma enorme onda. O carregamento daquelas embarcações era constituído de pedras. Fazia-se a carga compatível com a sua capacidade. E ficávamos muito tempo, principalmente na época das secas e naqueles baixios próximos às praias, navegando com aquelas bonitas e bem feitas embarcações. Algumas tinham até nome. E quando estávamos brincando com aqueles barquinhos,aproveitávamos para nos refrescar naquela água corrente, pois andávamos sempre preparados para o banho, vivíamos, via de regra, de calções, que se enxugavam no nosso próprio corpo. E, não raras vezes, estávamos sem camisa. Tínhamos uma pele bronzeada pelo Sol, para não dizer queimada e encardida pela constante exposição ao Sol e à temperatura escaldante. Mas aquela vida, para nós, era muito normal.
Como aquele lugar é muito quente, nós – os meninos, tomávamos vários banhos ao dia, no Rio. Aliás, ficávamos no Rio por muito tempo, quando não estávamos estudando ou trabalhando. Era um divertimento saudável – o nadar, principalmente naquela região escaldante. E desfrutávamos muito dessa possibilidade, ou melhor, dessa oportunidade; por isso, durante o dia, ficava-se, geralmente, só de calção. E após o banho, ou mergulho no Rio, este secava no próprio corpo, não era trocado. Mesmo porque, a qualquer momento, estávamos nos refrescando em outro banho.
‘Pescarias’ – Naqueles idos, o peixe era muito abundante no Rio Araguaia e em outros rios vizinhos. Mas eu gostava tanto de tomar banho no Rio, que, ao invés de pescar, eu ficava era tomando banho. Nunca fui um bom pescador. Quando a gente ia pescar juntos, eu e o Zezinho, o irmão de ‘Madrinha’, ele trazia uma ‘fieira’ grande de peixe, e eu, uma pequena. Ele era paciente e exímio pescador, e eu me divertia com o banho. Acredito mesmo que era a sede d’água. Eu, que viera lá do Nordeste, águas raras e fracas, ali me encantei com aquela abundância de água. Eu admirava aquele Rio, aquele mar d’água. Queria aproveitar tudo que podia daquela maravilha. E até hoje ele é um Rio por todos admirado, sinal de que eu tinha razão. E aproveitei bastante dele, o tempo todo que por lá passei, inclusive de suas maravilhosas praias, extensas a sumir de vista, sobretudo nos meses de junho a agosto. Eu fui apenas um sofrível pescador, e de peixes miúdos. A gente – o pescador amador só pescava de caniço, a conhecida vara.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])