As “reminiscências” do Raimundo XIV
Diário da Manhã
Publicado em 19 de janeiro de 2018 às 23:46 | Atualizado há 7 anosCerto dia, um conhecido da gente, ‘seu’ Emiliano, ‘o coxo’, que também vivia de pequenos serviços, até porque era limitado para o trabalho, por seu estado físico – pequeno, magro e, ainda por cima de tudo, coxo, me pediu emprestada a minha canoinha. Disse-me que era por poucos dias. Ele ia fazer algo em determinado lugar, não me lembro mais o que, nem onde. Mas a verdade é que não questionei o seu pedido. Até aí, ele era, para mim, uma pessoa séria, correta. Acima de tudo isso, muito mais velho que eu. Ele era um senhor já de certa idade. Tinha até família. Eu não tinha nenhum motivo para desconfiar de suas intenções. Para ser mais conciso, porque o assunto não merecia maior discussão, o ‘seu’ Emiliano não mais voltou de sua viagem, que seria breve, segundo ele.
Com o tempo, não pude esconder mais de Papai, aquele meu ato. Eu lhe contei que havia emprestado a canoa para aquele senhor. E que já se havia passado alguns dias, e ele ainda não havia voltado. Eu até achava que ele não voltaria mais. E a minha preocupação tinha sentido; ele, realmente, nunca mais voltou.
Papai ficou muito nervoso comigo, e me prometeu uma pisa por aquele meu ato desastrado. Para a época, era um prejuízo considerável. E, além do prejuízo material, o pior era eu ter ficado privado daquele importante instrumento de trabalho. E dali em diante, continuei a trazer lenha somente do carrasco, nas proximidades. E assim, ainda trabalhei uns bons meses, até sair de Conceição do Araguaia para a companhia de meu irmão Licínio, no início do ano de 1959. Nesse tempo, eu estava com 16 para 17 anos. E a promessa de castigo não saía da minha cabeça e, eu tenho certeza, tampouco da de Papai. Aquilo era um suplício. Eu me considerava uma pessoa produtiva, mas Papai não tinha a mínima codescendência. Estava sempre nervoso conosco. Para ele, eu era um rapazinho difícil, e muito irresponsável. Só por causa das brigas infantis e das de adolescente, bem como esse prejuízo que lhe dei. O único, por sinal. E porque queria servir ao próximo, que conhecia, e em quem eu confiava. Esse episódio não deixou de ter sido uma lição, na minha vida. É assim que a gente vai aprendendo a viver. Errando e acertando. Só que os acertos devem ser bem maiores. E que nos erros sempre encontremos lições para não cairmos em outras situações comprometedoras.
‘O Assassinato’ – Versão I – Um acontecimento que muito me marcou foi presenciar o assassinato do Tenente Silas. Já bem de tarde, começou uma briga na esquina próxima à nossa casa. Um soldado tinha ido lá no bar prender um elemento brigão. Só que o elemento a ser preso, João Corrêa, era muito bom de briga. O soldado estava para levar a pior. Para auxiliá-lo, chega o seu superior, o Ten. Silas, de cara bexiguenta. Ele era um homem alto e corpulento. Mas o mau elemento, apesar das boas qualificações de seus adversários, levou a melhor. Com uma faca, acertou, mortalmente, o Ten. Silas. Este teve morte instantânea. Foi um clamor geral, na cidade. Ele era muito benquisto, uma autoridade exemplar. Naqueles idos, em que a presença do juiz de Direito não era permanente, na cidade, a maioria ainda tinha residência fixa em Belém, a Polícia era, também, o Judiciário da cidade, o Delegado era tudo na manutenção da ordem. E, dessa forma, a morte do Tem. Silas muito pesar, trouxe à comunidade.
O certo, porém, é que, depois, veio o julgamento do réu, que foi preso em flagrante, e preso ficou até o julgamento. Como foi condenado, continuou preso, e parte do cumprimento da pena foi em Belém. Fiquei muito tempo com aquela cena horrível na mente. Foi horrível!
‘O Assasssinato’ – Versão II – Coisas que nos acontecem, ou que presenciamos na fase mais jovem da nossa existência, com o passar do tempo, às vezes, as nossas lembranças ficam um tanto opacas, obscuras, difíceis de serem visualizadas com maior clareza e nitidez, havendo, por isso mesmo, a possibilidade de serem distorcidas da verdade.
É o que me aconteceu com o caso relatado, anteriormente. Na minha lembrança, o João Corrêa havia ferido, mortalmente, o Ten. Silas. Mas, consultando seus contemporâneos, do ocorrido, e que por lá permaneceram por mais tempo, ou mesmo que continuaram morando naquela cidade, que tem melhores condições de relatar o fato com mais fidedignidade, ou seja, a versão mais real dos fatos. Segundo essas pessoas, meu cunhado Santana e seus irmãos Alfredo e Godofredo, o caso aconteceu da seguinte maneira:
‘O João Corrêa tinha aprontado ‘umas’ no bar do ‘seu’ Bazar. O Ten. Silas, como autoridade-mór naquela cidade, foi solicitado a dar um jeito naquele arruaceito, que, quando não estava bêbado, diga-se, de passagem, era uma boa pessoa, pois tinha bebido muito, e estava fora de si. O Ten. Silas, então, ordenou, de imediato, que um de seus subordinados, o soldado Antônio, tomasse as providências no sentido de prender o ‘farrista’. O soldado Antônio, que, segundo dizem, estava fazendo a barba, largam tudo, como um subordinado cônscio de suas responsabilidades e deveres, não pensou duas vezes, e partiu para o cumprimento das ordens que lhes foram dadas.
Nisto, o João Corrêa já subia a rua, tranquilamente, e sem ter deixado para trás nenhuma conseqüência danosa, – talvez não passara de uns copos quebrados, tacos de sinuca destruídos, garrafas em pedaços -, coisas de ébrio inconseqüente. Não deixava de ser um desrespeito aos proprietários, causando-lhes alguns pequenos prejuízos. Quando o soldado Antônio alcançou o arruaceiro – pois morava ali mesmo, próximo numa esquina perto de nossa casa, aquele o atracou pelas costas, de surpresa,e, sem que este o tivesse visto, antes. Estava já se dirigindo para sua casa. Andava com tranquilidade e, ao que parece, pois bêbado não tem consciência absoluta dos seus atos, naquele estado. Subia, tranquilamente, mas apenas cambaleando, o autômato. Não tinha arma nenhuma. A sua arma era somente sua força. E como a tinha!…
O soldado Antônio alcança-o e, de surpresa, atraca-se pelas costas, com as duas mãos no pescoço, e tentou sufocá-lo, para dominá-lo. Nisto, o João Corrêa, embora bêbado, levou as mãos à cintura do soldado, desarma o Antônio e, sem pestanejar, atira nele sem saber em quem, na verdade, estava atirando. Ele, àquela altura, estava apenas autodefendendo-se de seu agressor, fosse ele quem fosse – podia até ser seu irmão. Não sabia de quem se tratava. O agressor estava em suas costas.
Com aquela confusão toda, o Ten. Silas se aproximou para tentar prestar auxílio, ou mesmo o socorro ao seu subordinado. Era tarde. O tiro tinha sido fatal. Além disso, o Tenente ainda foi atingido com um ou dois tiros, pois o João Corrêa não descarregara a arma de seu primeiro agressor. Apenas atirara para se defender. E o tiro tinha sido certeiro.
Então, na verdade, o morto fora o Antônio, soldado que, no cumprimento de seu dever, dera sua vida. Quanto a seu superior, teve o dissabor de perder um de seus fiéis subordinados e, com certeza, não lhe foi fácil conviver com aquelas lembranças. Mas, na sua função, tinha que conviver com fatos desagradáveis como este. Estava, até certo ponto, preparado para isto. O seu ferimento na virilha não lhe causou maiores conseqüências, a não ser uma intervenção cirúrgica de pequeno porte, e curativos periódicos. Dentro de poucos meses, estaria curado.
Quanto ao agressor e assassino, foi preso, julgado e condenado. Pegou muitos anos de cadeia em regime fechado. Cumpriu parte da pena em Belém, e a outra parte lá mesmo, em Conceição do Araguaia. Foi um desastre em sua vida, também. Pagou caro por aquele seu ato inconsequente. Prejuízo maior e imensurável quem teve foram os familiares de ‘seu’ Antônio soldado.
Embora concordando com esta versão, manterei a minha, embora distorcida. Faço isto para demonstrar qual a lembrança que eu guardei do ocorrido, que muito me marcou naquela quadra de minha vida, em que me preparava para o futuro, e via gente perder sua vida com tão grande brutalidade e por motivos fúteis.
Eu comecei a trabalhar na Prefeitura no início de abril de 1958. Eu fora nomeado ‘Protocolista’, mas, na verdade, eu fazia de quase tudo, naquela repartição. Quando eu digo ‘quase tudo’, quero dizer ‘coisas mais simples’ que um jovem de apenas 15 anos/16 anos de idade podia fazer. Eu era encarregado de abrir a Prefeitura. Tinha que ir bem cedinho, porque eu tinha, também, como atribuição extra a limpeza interna das repartições. Quando eu digo repartições, estou incluindo o espaço ali destinado para o funcionamento da Câmara Municipal, também.
Quando os demais servidores chegavam, eu já havia varrido todos os cômodos abertos, de uso cotidiano, da Prefeitura, bem como o Salão da Câmara Municipal. E eu fazia todos esses serviços extras, o mais contente possível. Já pensou, eu, um ‘Protocolista’ Nomeado? Para mim, não tinha coisa mais importante naquela minha idade. Eu, que vivia trabalhando, até ali, em serviços grosseiros – roça, buscar e rachar lenha, buscar água para fornecer às casas, transporte de bagagens! Eu ali, no meio dos funcionários públicos, na sombra, em contato diário com os funcionários municipais! É bem verdade que, com todo aquele nobre ofício, nem por isso fiquei arrogante. Eu, na verdade, continuava o mesmo. Os meus princípios, parece, eram nobres e, portanto, superiores. Não superior de orgulho bobo, tolo, mas superior de um orgulho nobre.
Nas horas de folga, quando eu podia, fazia os trabalhos de folga. Esses, eu não abandonei. Era minha obrigação, meu dever de casa, como se diz.
Essas minhas obrigações caseiras, só as deixei quando me mudei para Anápolis, início do ano de 1959. Trabalhei nelas até a véspera de minha saída. Tenho certeza de que deixei os potes cheios d’água, e o fogão cheio de lenha e com bastante lenha de reserva no quintal.
Esse emprego na Prefeitura me foi de muita valia para minha vida futura. Foi o meu primeiro emprego. Aprendi, ali, a datilografia, que era de muita utilidade nos serviços burocráticos. E como me valeu, no futuro! Adiante, relatarei o porquê.
Todos, na Prefeitura, eram de bom coração. Do Prefeito, Sr. João Rego, de fino trato, ao ‘seu’ Caio, nosso vizinho, que morava na esquina próxima de nossa casa, à Dona Luzia (Dona Luizinha), Tesoureira. ‘seu’ Caio era o Contador. Também era o ‘barbeiro’, nas horas de folga.
E foi assim que aprendi a profissão de datilógrafo: A Prefeitura tinha as máquinas de escrever, não mais me lembro da marca delas. O seu ‘Caio’ escrevia, aliás batia à máquina, como se dizia, utilizando apenas os seus dois dedos indicadores. Mas vendo ele o meu interesse, e com o seu jeito bom e interessado no progresso da gente, no futuro da pessoa mais nova, disse-me: “Olha, Raimundo, o correto de usar a máquina de escrever não é do jeito que eu faço, mas usando os 10 dedos das mãos”.
Eu, que já iniciava do seu jeito, errado, prontamente mudei. Posicionei meus 10 dedos nas teclas, de maneira correta, segundo ele me orientara, e era, realmente, assim. Fiquei sabendo, muito tempo depois, até quando já havia aprendido com aquele professor autodidata, carinhoso para comigo, que sua orientação estava correta. Somente quando eu havia saído de Conceição do Araguaia, é que vim a conhecer o manual datilografia, onde pude constatar, com alegria, que ‘seu’ Caio me havia ensinado de maneira correta. E com essa ajuda valiosa e carinhosa, de uma pessoa altruísta, me foi possível dar meus primeiros passos no preparo para a vida. Porque, aprender alguma coisa, requer, por mais simples que seja, como, no meu caso, a datilografia, muito interesse, e é sempre muito útil. Quem for observador e atento, poderá constatar isto, no transcorrer da sua própria vida.
Uma vez, já contei como aprendi a escrever à máquina, usando o método correto, falarei de minhas atribuições nas funções específicas de ‘Protocolista’.
Como o nome já é autoexplicativo, a função precípua era, pois, a de protocolizar, na Prefeitura, os requerimentos de toda ordem que ali entravam. Eram solicitações de loteamentos urbanos, medições de áreas e numa lista interminável estavam os requerimentos para compra de terras, na zona rural.
E foi naqueles idos de 1957 e 1958, que começaram a chegar àquela região, considerado ‘O Eldorado’ das terras produtivas do País ainda não exploradas, constituídas de matas virgens e pujantes, e onde a água era e ainda é, abundante, os sulistas, assim chamados, naquela época, que eram, na sua maioria, mineiros.
Lembro-me bem da chegada daquela avalanche de ex-proprietários de terras, no ‘sul’ – Minas Gerais, dentre outros. Eles lá vendiam as suas pequenas ou médias propriedades, e ali pretendiam aumentar bem mais as suas áreas. O raciocínio era correto. As pessoas que para ali corriam, tinham visão futurista.
Via-se, pelo porte e atitude, que se tratava de gente trabalhadora, porém muito simples. Se não todos, pelo menos a maioria de que eu bem me lembro.
Eles usavam roupas riscadas, xadrezadas, panos tecidos no tear, fios multicolores. De acordo com a cor dos fios que predominasse na hora de tecer aquele pano, aquela cor dava o tom do tecido. Usavam o embornal a tiracolo. Era ali que eles carregavam os seus utensílios de uso imediato – o fumo, a binga, o ‘papel abade’ para enrolar o fumo e fazer o cigarro, quando não traziam algumas boas espigar de milho, bem finas, com as quais eram feitos os cigarros, em vez de fazê-los no papel. As palhinhas já vinham cortadas.
Eles iam à Prefeitura, orientados por seus corretores de imóveis, fazer o requerimento da área pretendida. E alguns deles, através de seus futuros procuradores, acompanhavam o processo junto à repartição competente na capital do Estado do Pará, Belém.
Eu, o ‘Protocolista’, que já havia aprendido com o ‘seu’ Caio a datilografia, fazia os requerimentos à máquina. Eu ganhava um pequeno valor por esse serviço, que não era função da minha ‘pasta’.
Em seguida, eu protocolava aquele requerimento. Recebia do Requerente o valor determinado e, posteriormente, fazia a prestação de contas com a Tesoureira, Dona Luzinha. Às vezes, eu gastava, indevidamente, parte daquele recebimento até o pagamento de meu ordenado, para comprar minhas coisinhas de uso pessoal, ou de consumo. Mas eu não demorava a repor aquele valor, e fazia nova prestação de contas. Eu já era um tanto vaidoso.
E, dessa forma, trabalhei muito nesses requerimentos, porque, naquele ano, não paravam de chegar os ‘sulistas’. Eram centenas de requerimentos. E naquele ano só foi o início da chegada dessa gente nova para o Estado do Pará. Eles continuaram chegando nos anos posteriores , inclusive de outros Estados da Federação – São Paulo, Goiás, etc. Papai mesmo se beneficiou, por muitos anos ainda, com a chegada dessa gente, nos anos subseqüentes. Foi quando ele aprendeu a profissão de Agrimensor. E foi nessa profissão que ele se estabilizou, econômica e financeiramente. Foi nesse período que adquiriu suas terras de maior extensão. E uma delas veio a conservar até os últimos dias de sua vida laboriosa. As demais propriedades, ele as vendia, depois, para fazer capital de giro.
E foi datilografando esses requerimentos que eu ia melhorando cada dia mais minha habilidade nessa atividade. Não me tornei um exímio datilógrafo, mas, com o que aprendi lá no Estado do Pará, como ‘Protocolista’ da Prefeitura Municipal de Conceição do Araguaia, foi que me servi para desempenhar outras funções burocráticas, no futuro não mundo distante.
Trabalhei muito como ‘Protocolista’ até minha ida para Anápolis/GO, para morar na companhia do Licínio. Entrei na Prefeitura de Conceição do Araguaia no dia 14 de abril de 1958, e pedi exoneração no dia 30 de janeiro de 1959, em função de minha mudança para o Estado de Goiás, em busca de melhores dias, e onde, felizmente, os encontrei.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])