As “reminiscências” do Raimundo XIX
Diário da Manhã
Publicado em 23 de fevereiro de 2018 às 21:49 | Atualizado há 7 anos‘Pernas de Pau’ – Tínhamos, também, esse divertimento que eram duas peças, com uma pequena plataforma, na parte inferior, para se apoiar o peito do pé. As peças eram de madeira de boa qualidade para não quebrar. Eram grandes, porque tínhamos que pegar na parte superior delas com as duas mãos, com as quais as movimentávamos nas passadas. A gente subia naquela pequena plataforma, onde se apoiava o peito do pé. Prendia, a vara, os dois dedos maiores, e ia dando os passos – ‘toc, toc, toc’… E andavam-se longas distâncias sem botar os pés no chão. A gente treinava tanto que se andava, em grande parte da cidade, em cima daquelas plataformas. Inicialmente, entre os dedos, faziam muitos calos. Com o passar do tempo, o couro ia calejando e engrossando, a ponto de não doer mais. O calo ficava permanente, mas sem qualquer dolorimento. Pegavam-se duas varas longas, mais ou menos do tamanho de uma pessoa adulta. Colocava-se uma ‘plataforma’ em cada um, geralmente do pé de uma pessoa adulta, encaixava-se aquela vara comprida entre os dois primeiros dedos do pé, e saía-se andando pela cidade, todo garboso, sem pisar no chão. Geralmente, andava-se com outra pessoa, um colega. Era um ótimo divertimento.
‘Peteca I’: As ‘petecas’ são as bolas de gude daqui. Jogava-se, também, com essas petecas para ganhar essas pequenas bolinhas. Fazia-se um pequeno buraco no chão e, geralmente, jogava-se de dois parceiros. O objetivo consistia em jogar para dentro daquele buraco a bolinha do adversário. Jogava-se com o dedo polegar e a bolinha apoiada nos outros dois dedos, – o indicador e o dedo médio. Ganhava aquele que colocasse dentro do buraco a bola colocada em jogo para ser emburacada. Ganhava aquele que conseguisse colocá-la dentro do pequeno buraco.
‘Peteca II’: Havia outro jogo que se jogava em duplas. Era uma pequena bola de couro, ou de palha de milho, cheia de terra, e, na parte superior, havia penas de galinha, ou de outras aves. De sorte que, jogada em direção ao parceiro, aquelas penas ficavam sempre para cima, e o fundo dela sempre para baixo, onde se batia com a palma da mão e a fazia levantar vôo e o companheiro de jogo não podia deixá-la cair no chão. Aquele que a deixasse cair de seu lado, perdia pontos. Este pequeno brinquedo era também chamado de ‘peteca’
‘Danças’ – Divertimento de gente mais madura, de que eu muito gostava: Dançar. Foi-me difícil aprender. E nem dançava muito bem… As moças não gostavam de dançar com rapazes que não sabiam dançar… Como, então, eu iria aprender? Lá, na cidade, não havia escola de dança. Era difícil, a situação. A gente ia aos bailes, uns até não muito recomendáveis para moças de família. Nesses bailes de mulheres mais maduras e mais experientes na vida, até eu conseguia par. Não era muito enjeitado. Parece que aquelas ‘mulheres da vida’ eram mais compreensíveis com a molecada, os aprendizes. Mas os ‘bailes de sociedade’, nas matinês, durante o dia, nas casas de família, os principiantes eram mais rejeitados.
E a coisa era até humilhante, pois Você procurava aquela moça para dançar, e ela desconversava. Dizia que já estrava cansada, já tinha dançado bastante. Grande desculpa! Eu sabia que é porque eu não era o par ideal. Era ‘um perna dura’, ou seja, não sabia dançar. Muitas eram cruéis. Não queriam nem saber de sua decepção. E assim eu ia, aos tranco e barrancos, tentando aprender a dançar. Não desistia. E, de festa em festa, principalmente em festas escolares, quando a cidade se enchia de moças e rapazes que estudavam fora, as possibilidades de dançar aumentavam. E, dessa forma, aprendi alguma coisa. Não digo que sou um exímio dançarino, mas dá para satisfazer o meu ego. Acho que cheguei ao estágio de não passar vergonha, em baile.
‘O Currupio’ – Essa brincadeira era muito usual na meninada daquela época. Tanto os meninos, quanto as meninas.
Aquele brinquedo era constituído de uma esfera, geralmente de casco de cabaça, de aproximadamente 6 cm de diâmetro. Não tinha dimensão definida, para ficar mais ‘bonitinho’ era todo ‘denteado’. No centro, tinha dois furos por onde era introduzido um cordão duplo, de tamanho aproximado de 15 a 20 cm. Esse cordão duplo era colocado nos dedos polegar e indicador e flexionando com ambas as mãos, aquela esfera girava, alternadamente, da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita. A velocidade com que a gente girava o ‘currupio’, fazia com que fosse visto como algo transparente. E cada um tinha o seu. Não era jogo de competição. Podia-se brincar até individualmente. E com aquela brincadeira, demonstrava-se que éramos felizes. Criança que brinca é criança feliz! Adolescente, também! Apesar de já trabalharmos em casa, naquela idade – dos 11 anos em diante -, estudávamos e brincávamos, tipo um zunido, cada vez que rodava para a frente, e quanto voltava para trás.
‘Barquinhos de talo de Buriti’ – Falar de tantos brinquedos e não falar dos ‘barquinhos de talo de buriti’, a gente que era ribeirinho, e de um belo Rio – o Rio Araguaia – seria desprezar uma das diversões mais típicas daquela região. Eu não tinha muito pendor para trabalhos manuais. Consequentemente, não era grande fabricante daquelas embarcações. Tinha colegas com mais facilidade de fabrico. Os barcos eram réplicas das embarcações que por ali aportavam. Eram os barcos de popa, – aqueles cujos motores eram instalados na parte trazeira, os médios e os barcos de centro, que eram muito maiores. Aqueles com motores instalados no centro da embarcação tinham até chaminé.
Os talos de buriti eram descascados, e aquela casca servia para o fabrico dos pregos, ou seja, todo o material empregado era só o talo de buriti. E nós íamos ao rio e, com um cordão amarrado à proa, puxávamos aquelas embarcações que produziam uma enorme onda. O carregamento daquelas embarcações era constituído de pedras. Fazia-se a carga compatível com a sua capacidade. E ficávamos muito tempo, principalmente na época das secas e naqueles ‘baixios’ próximos às praias, navegando com aquelas bonitas e bem feitas embarcações. Algumas tinham até nome. E quando estávamos brincando com aqueles barquinhos, aproveitávamos para nos refrescar naquela água corrente, pois andávamos sempre preparados para o banho – vivíamos, via de regra, de calções, que se enxugavam no nosso próprio corpo. E, não raras vezes, estávamos sem camisa. Tínhamos uma pele bronzeada pelo Sol, para não dizer queimada e encardida pela constante exposição ao Sol e à temperatura escaldante. Mas aquela vida, para nós, era muito normal.
Como aquele lugar é muito quente, nós – os meninos, tomávamos vários banhos ao dia, no Rio. Aliás, ficávamos no Rio por muito tempo, quando não estávamos estudando ou trabalhando. Era um divertimento saudável -, o nadar, principalmente naquela região escaldante. E desfrutávamos muito dessa possibilidade, ou melhor, dessa oportunidade; por isso, durante o dia, ficava-se, geralmente, só de calção. E, após o banho, ou mergulho no Rio, este secava no próprio corpo, não era trocado. Mesmo porque, a qualquer momento, estávamos nos refrescando em outro banho.
‘Pescarias’ – Naqueles idos, o peixe era muito abundante no Rio Araguaia e em outros rios vizinhos. Mas eu gostava tanto de tomar banho no Rio, que, ao invés de pescar, eu ficava era tomando banho. Nunca fui um bom pescador. Quando a gente ia pescar juntos, eu e o Zezinho, o irmão de ‘Madrinha’, ele trazia uma ‘fieira’ grande de peixe, e eu, uma pequena. Ele era paciente e exímio pescador, e eu me divertia com o banho. Acredito mesmo que era a sede d’água. Eu, que viera lá do Nordeste, águas raras e fracas, ali me encantei com aquela abundância de água. Eu admirava aquele Rio, aquele mar d’água. Queria aproveitar tudo que podia daquela maravilha. E até hoje ele é um Rio por todos admirado, sinal de que eu tinha razão. E aproveitei bastante dele, o tempo todo que por lá passei, inclusive de suas maravilhosas praias, extensas a sumir de vista, sobretudo nos meses de junho a agosto. Eu fui apenas um sofrível pescador, e de peixes miúdos. A gente, – o pescador amador só pescava de caniço, a conhecida vara.
‘Tata pavão’ – Essa brincadeira constituía-se do seguinte: Fazia-se um trato entre duas ou mais pessoas, e tinha um período de vigência. Esse trato era assim: Caso Você visse aquela pessoa com quem tinha feito o pacto, com alguma coisa na mão, e que aquilo lhe despertasse algum desejo de possuir – via de regra, coisa de comer, e vendo aquela ‘vítima’ distraída, até, às vezes, não se lembrando mais daquela combinação, a gente ia de mansinho, se aproximava da pessoa e, muito rapidamente, sem dar tempo para defesa, dizia-se ‘tata-pavão’, caiu no chão, perdeu a razão’, e, ato contínuo, batia-lhe na mão para derrubar no chão aquela coisa desejada. E, caso a coisa cobiçada caísse no chão, aquilo passava a lhe pertencer.
Quantas e quantas vezes Você estava, distraidamente, comendo alguma coisa, tão gostosa de lamber os beiços, e a gente, muito sorrateira e rapidamente, chegava e fazia aquela declaração, e, não raras vezes, conseguia o seu intento. Porque, também não era muito fácil pegar a pessoa distraída. As pessoas que participavam da brincadeira estavam quase sempre preparadas para o ataque-surpresa. Comia-se o bolo ou a fruta, mas de olho na presença de algumas das pessoas contratantes. Caso a pessoa não fosse esperta, não conseguia comer em paz a guloseima. E quanto mais gostoso e raro fosse o fruto desejado, mais esperto tinha que ficar quem estava saboreando aquele acepipe. Geralmente, eram bolos e frutas. A gente não se importava se caía no chão – mesmo em se tratando de bolos.
Não se tinha escrúpulo da esperteza. Afinal de contas, era uma brincadeira. E o elemento surpresa fazia parte da brincadeira, para alcançar o sucesso.
E a coisa parece até que ficava mais gostosa, quando conseguida daquele jeito, – subtraída com sagacidade.
Havia casos em que o perdedor não aceitava, pacificamente, a derrota, principalmente se o bem perdido fosse muito precioso – um bolo ou outro alimento comestível, muito apetitoso, e era motivo de ‘desfazimento’ do trato, ou seja, do ‘acordo’. E ali mesmo terminava tudo. Por enquanto!… Porque, depois, passado aquele momento de raiva, começava-se tudo de novo. E a pessoa procurava ficar cada vez mais atenta.
‘Os ‘cala-bocas’ e os ‘pirulitos’ – Como quase toda criança, eu gostava muito de doces, em geral. Além dos que eu comia, em casa, adquiria outros no comércio como os ‘cala-bocas’, ou vendido nas ruas pela meninada, como o caso dos pirulitos. Estes eram de fabricação caseira.
Aqueles, os ‘cala-bocas’ eram os que, hoje, chamamos de pirulitos. Era uma grande bola presa a um cabo, o palito. Eram muito gostosos. E de vários sabores. Seu tamanho era tão grande que, quando colocado na boca, a gente ficava com dificuldade de falar. Daí seu nome apropriado de ‘cala-boca’. Tinha a forma de um coco de ‘Macaúba’ que, também, a meninada usava roer a polpa, colocando-o, todinho, na boca, que também emudecia. Menino come de tudo!..
Já os pirulitos, lá para nós, eram, na maioria das vezes, de fabricação doméstica. E tinham o tamanho de uns 8 cm aproximadamente, e guardavam a forma cônica, e também era preso a um cabo ou palito. Também eram de sabores variados, e vendidos nas ruas por crianças já da ‘maior idade’, entre seus 10 a 12 anos. E tinha até um dito de brincadeira em que se falava a respeito: ‘Olha o pirulito enrolado no papel, e enfiado no palito’. Mas era só uma brincadeira. Eles anunciavam a venda, mas não necessariamente desse jeito.
‘Andar de Bicicleta’ – Naqueles idos, andavam por aquelas bandas empresários com dezenas de bicicletas, que permaneciam pelas cidades vários meses, – bicicletas de aluguel. Acredito que, por não ter dinheiro para pagar muitas horas-aula, nunca aprendi a andar de bicicleta por lá, apesar de várias tentativas. Mas o tempo, que custava muito dinheiro para mim, não foi o suficiente para eu me equilibrar naquelas duas rodas. Só vim a aprender anos depois, em Anápolis, numa bicicleta do Licínio, e que eu podia contar com todo o tempo necessário, para a minha aprendizagem. Era de cor ‘azul claro’, maracá ‘Gulliver’. Foi uma sensação muito boa! Tinha até farol, tinha dínamo que mantinha a luz (do farol) bem acesa. O dínamo era um tipo de bateria, que era sempre recarregado com o movimento do pneu traseiro. Uma peça ligava dínamo e pneu.
Antes de eu deixar de vez aquela ‘cidade maravilhosa’, minha ‘cidade-luz’, – pois foi ali que se me abriram na mente, através de uma pequena janelinha, os horizontes de uma vida melhor. Não posso deixar de registrar o quanto Conceição do Araguaia ficou gravada, de uma maneira muito positiva e indelével, naquela minha passagem por lá. O quanto me foi útil a convivência com aquela gente. Sabia que, ali, não era tudo, mas um bom começo. Ali, naquele fim de mundo, eu descobria que o mundo não findava ali.
No meu trajeto para Conceição do Araguaia, eu passara por duas outras cidades, bem melhores: Floriano, No meu Estado, o Piauí: e Carolina, no Estado do Maranhão. Essas duas cidades acenderam em mim uma centelha que iria me iluminar por toda a minha vida. Então, eu sabia, ao chegar a Conceição do Araguaia, que havia um mundo bem maior. Bem mais esperançoso. Ali, era uma cidade pequena. No entanto, a Matriz, o Colégio Educandário ‘Santa Rosa de Lima’, onde eu estudava, e o Colégio dos ‘Padres Seculares’ eram grandes, até mesmo desproporcionais para o lugar. Aquela cidade devia ter uns 30 quarteirões apenas. A cidade de Conceição do Araguaia, apesar de ser uma cidade pequena, tinha seu charme: Avenida de pista dupla, ainda sem nenhum calçamento, eu achava muito garbosa, com suas lindas mangueiras, de mangas comuns que, quando maduras, eram de um vermelho muito lindo. Aquele colorido nos aguçava ainda mais a vontade gulosa de saboreá-las. As que mais existiam, naquela região. Essa avenida ia dar no Rio Araguaia, o ‘Majestoso’!
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])