Opinião

Brasileiro rico

Diário da Manhã

Publicado em 14 de março de 2017 às 02:10 | Atualizado há 8 anos

Quando morei em Brasília, na minha quadra havia um boteco frequentado por aposentados. Era uma espécie de Clube do Bolinha: não entrava mulher. Ao redor das mesas espalhadas pela calçada reuniam-se homens por volta dos 50 anos, de bermudão, camiseta e sandália. Começavam a chegar por volta das onze horas da manhã, pediam cerveja com petiscos variados, jogavam truco ou dominó; em altos decibéis, conversavam, cantavam sucessos do momento ou marchinhas de carnaval.

Recheadas de palavrões, as conversas iam do futebol ao último escândalo político, passando pela recepção de novos membros, vale dizer, efusivos abraços e brindes ao mais recente aposentado. A partir desse momento, o neófito passava a desfrutar o “dolce far niente” de quem, certamente exausto de tanto esforço, parara de trabalhar em plena maturidade e no gozo de boa saúde, tendo assegurada uma justíssima aposentadoria.

Ao lado do boteco ficava uma lojinha de idosos verdureiros japoneses; a esposa atendia no balcão, enquanto o marido carregava caixotes, arrumava prateleiras, cuidava da contabilidade. Ajudavam-nos os netos, dois nisseis adolescentes. Quando não estavam na escola, os garotos faziam de tudo, inclusive entregas domiciliares; nos intervalos, debruçavam-se sobre as tarefas escolares, no que eram vigiados e cobrados pelos avós.

Como eu trabalhava nos dois expedientes, costumava comprar verduras e frutas no intervalo do almoço, quando o movimento era menor. A japonesa atendia-me com presteza, ocupadas que éramos, nós duas, as horas voando entre o batente e os afazeres domésticos. Trocávamos algumas palavras, comentávamos sobre a seca ou a chuva, constatávamos a beleza ou o raquitismo de tomates, bananas, pimentões e morangos. Às vezes, ela me presenteava com uma pera ou uma bela manga rosa. Gentilezas de marketing.

Em certo meio de semana o boteco dos aposentados estava mais movimentado: era dia de jogo do campeonato brasiliense. Uma televisão nova fora instalada; bandeirolas agitavam-se, o cheiro de linguiça atiçava o paladar. A bola começaria a rolar dentro de algumas horas, mas por que esperar? Um sambinha de breque antecipava a festa – pois o que vale mesmo é comemorar!

Passei ao largo da confraria exultante, entrei na quitanda dos japas. Depois dos cumprimentos, disse algo sobre a animação da vizinhança; a verdureira concordou e comentou, na sua maneira sincopada de falar:

– Brasileiro povo rico, muito rico! E repetia, enquanto entregava o troco: Japonês pobre. Brasileiro rico!

Perguntei-lhe por que dizia aquilo; e ela, mostrando os futebolistas esfuziantes:

– Gente rica. Aposentada. Meu marido mais velho, mais idade que eles. Eu mais velha. Meu irmão, minha irmã mais velha. Ninguém aposentado. Japonês aposenta velho, doente. Quando não pode mais trabalhar.

E concluiu:

– Brasileiro aposenta novo. Com saúde. Não trabalha mais. Brasil sustenta aposentado. Japão pobre. Brasil rico.

Um e-mail recentemente recebido fez-me vir à lembrança o vulto daquela mulher enfurnada na lojinha de poucos metros quadrados, atendendo domésticas e donas de casa, contando os centavos com vistas ao futuro dos netos. A ideia central da mensagem é a mesma: nós, brasileiros, somos ricos, muito ricos – só que, desta vez, comparados aos pobres norte-americanos.

Com efeito: no e-mail recebido, explica-se que, em relação aos Estados Unidos, pagamos o dobro pela água que consumimos a despeito de o Brasil ter a maior reserva hídrica do mundo. Ainda que, em nosso país, as principais fontes de energia sejam as hidrelétricas (em tese mais baratas), nossas tarifas são muito mais caras em relação às pagas pelos ianques, que se utilizam majoritariamente de usinas nucleares e termoelétricas, dispendiosas e poluentes.

Até há pouco tempo atrás, o governo lulo-dilmista alardeava que somos autossuficientes em petróleo, graças, naturalmente, à inspirada administração petista da Petrobrás. Mesmo assim, pagamos uma exorbitância pela gasolina; nos Estados Unidos a média de preço corresponde a 0,52 centavos o litro – e gasolina pura, sem mistura!

No capítulo impostos, a situação parece irreal: pagamos 40.000,00 reais por um carro que, lá, é vendido por menos da metade. Na verdade, arcamos com o preço real do veículo, acrescido outro tanto de tributos – em troca recebendo serviços públicos de péssima qualidade.

E por aí vai. Juros de usura são oficializados: quando precisamos de um empréstimo bancário, as taxas mensais ultrapassam, no Brasil, as que são cobradas anualmente pelo valoroso irmão do Norte.

Em média, cada brasileiro trabalha quatro meses por ano para pagar tributos, num festival de siglas: IR, PIS, CONFINS, ISS, IPTU, ITR etc, etc. Nos Estados Unidos, a cobrança padrão é de 6% de imposto sobre valor agregado, mais o Imposto de Renda. Nesse item é igualmente enorme a diferença: o brasileiro que ganha a partir de 2.300,00 reais por mês é obrigado a recolher esse tributo; Tio Sam isenta o cidadão até o limite de 3.000 dólares mensais, cerca de 9.300 reais.

Assinale-se, ainda, que muitos de nós vamos além, quando suprimos a ineficiência do poder público, custeando a escola particular dos filhos, o plano de saúde privado, a segurança individual e da família, até a funerária para o descanso final.

Entra ano, sai ano, a situação não muda, até se agrava.  Pelo que parece válido parafrasear a verdureira de Brasília: “Japonês pobre! Americano pobre! Brasileiro rico!”

(Lena Castello Branco,[email protected])

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