Breves contribuições para entender a crise do PT (1)
Diário da Manhã
Publicado em 26 de fevereiro de 2018 às 21:42 | Atualizado há 7 anosFrei Mateus era um grande intelectual, de fina ironia, comum a aos sábios e inteligentes. Como homem de fé, frei dominicano, brincava com cotidiano humano, e uma de suas “gozações” era a dificuldade, um verdadeiro sentimento de culpa, dos católicos progressistas e dos comunistas no trato com o dinheiro. E citava um conhecido que tinha construído uma casa, mas a ele se desculpava ao seu mestre Mateus dizendo que a casa era “velhinha, pobrezinha”.
As lições do mestre são lembradas quando se toma conhecimento dos milhões desviados das empresas, dos programas de governo, nos anos recentes, ações comuns ao longo da história brasileira, mas inaceitável do ponto de vista ético e político de uma maneira geral e, em particular pela turma que pregava e defendia a ética como um bem universal. Uma lástima. O que aconteceu? O distanciamento dos ideais se faz aos poucos e o poder ajuda muito no processo. Mesmo que continue a pensar nos ideais de justiça, de sobriedade, de luta pelos menos favorecidos, o poder é inebriante. Mas o fazer ou “deixar rolar” (fazer vista grossa), para os atos de desonestidade é inadmissível, mesmo que a desculpa seja a governança ou o fortalecimento dos lutadores pela causa “justa”. Muitos dos que tinham vergonha do dinheiro não resistiram às oportunidades de enriquecer que o “sistema” tão habilmente proporciona.
Mas comecemos pelo início.
Quando a caravana de dois ônibus (sem ar condicionado ou banheiro) foi de Goiás para São Paulo levando participantes para a histórica reunião de fundação política do Partido dos Trabalhadores no dia 10 de fevereiro de 1980, a conversa, os “conchavos” eram sobre como concretizar o sonho de construir um partido diferente dos existentes, buscando a construção de um País mais justo, redemocratizado (a ditadura ainda em vigor) onde a política fosse voltada aos interesses da maioria da população, um País republicano.
O clima político ainda era tenso, mas o desgaste dos governos militares era notório. A chamada “Linha Dura” ainda faria atentados como os da OAB do Rio e no Rio Centro, mas os militares mais lúcidos já estavam vencendo, aprovando a Lei da Anistia, entre outros avanços.
A imensa maioria dos participantes da reunião no Colégio Sion era constituída de pessoas de boa vontade, alguns até ingênuos, com suas origens nos sindicatos, na igreja católica progressista, anarquistas, nos movimentos sociais de diferentes origens, intelectuais. O Partido Comunista e o PC do B não apoiavam a criação do PT. As “tendências” políticas sempre existiram, luta normal pelo poder, alguma aderindo ao PT somente como tática para um passo revolucionário maior, mas não influenciaram o encontro. Todos, eu também, vibrávamos com o fato de estar participando de um momento histórico, da construção de um partido nascido das bases. A imagem do então Senador Henrique Santillo secretariando a reunião, colhendo a assinatura dos fundadores, em uma mesinha improvisada na frente do auditório, é indelével.
A estrutura proposta para o PT era piramidal, tendo como base os “Núcleos”, grupamento de militantes ou simpatizantes que discutia semanalmente ou quinzenalmente as atividades partidárias, a realidade brasileira, tendo como ideia central a formação política de cada membro. Participar de um “Núcleo” era a exigência para o militante participar da vida partidária. Participei do Núcleo 1º de Dezembro (lembra-se Paulinho?) e como representantes do Núcleo participávamos nas reuniões maiores do partido. Cada militante tinha sua atividade ou trabalho, alguns participando de mobilizações, de comandos de greve, fundando as associações de bairro, sindicatos rurais, sindicato de empregadas domésticas, levantando a bandeira dos diretos humanos, de atividades de classe em suas profissões. Não existia nenhuma profissionalização no PT.
Na primeira eleição que participamos em 1982 levamos uma lavada. É que o casuísmo da ditadura militar-civil instituiu que o eleitor só teria seu voto válido se votasse em apenas um partido para o cargo de governador, de senador, de deputado federal e estadual. O PMDB venceu em grandes Estados. Apesar das gozações (trabalhador Não vota em trabalhador – DM, novembro de 1982), a moral sempre se manteve elevada, pois tínhamos consciência de que era preciso dar tempo ao tempo para consolidar o sonho. As filiações aumentavam constantemente, o PT crescia.
Mas o peso do processo eleitoral já pesou negativamente nas eleições seguintes, onde candidatos se apresentaram sem estar ligados a nenhum Núcleo e a direção partidária, por razões pragmáticas, aceitou. A ideia de um partido nascido das bases estava sendo rompida. Apesar disso o sonho de um partido ético, diferente dos demais, se propondo a representar os desprotegidos sociais, os trabalhadores em particular, era mantido, mas sua estrutura começava a ficar igual aos demais.
Com o correr do tempo o PT começa a se tornar um partido de vocação eleitoral e não mais de mobilização popular, estas assumidas pelo MST (nascido no Paraná em janeiro de 1984) entre outros movimentos. A criação das Centrais Sindicais nos anos 1980 estruturou a vida sindical de forma nacional, mas relativamente independentes dos partidos políticos. Lula sempre foi o grande nome mobilizador, pois transitava com facilidade entre os movimentos populares e sindicais.
Nos anos 90 as alianças se avolumam e algumas intervenções da cúpula nacional do PT, como a do Rio de Janeiro, deixam graves sequelas. A busca do poder torna-se cada vez mais prioritária, e numa famosa reunião em São Paulo, em 1993, a tese de Dirceu vence, a saber, se continuar a bater de frente nos problemas sociais Lula nunca será eleito. Marco Aurélio Garcia, entre os poucos participantes da reunião, podem ter ficado contrariados, mas a aceitação da tese por parte de Lula o fazem aceitar a mudança. Surge a figura de “Lula Paz e Amor”, uma figura mais leve, onde o imenso carisma de Lula foi aproveitado com maestria pelos seus marqueteiros.
No início dos anos 80, quando defendíamos com vigor a necessidade da Igreja Católica apoiar o PT, Frei Mateus sempre ficou reticente, principalmente com nosso endeusamento de Lula. “Pai” do Betinho, que era ligado ao antigo PTB, Frei Mateus sempre ouviu mais a ele do que a nós, apesar do Henfil apoiar o PT. Sabedoria, pois sabia que a tentativa de Brizola de fundar um partido junto com Lula tinha sido rejeitada por Lula que, nas palavras do emissário que veio de Portugal para fazer a proposta de união, “Lula queria o partido dele”. E, de forma magistral, Lula conseguiu ter o seu partido, no qual manda e desmanda.
E o projeto do PT para o Brasil? Isso fica para o próximo artigo.
(Marco Antônio Sperb Leite, professor aposentado do Instituto de Física da UFG – ma.sperb.lei[email protected])