Opinião

Bucólicos sazonais

Diário da Manhã

Publicado em 12 de agosto de 2016 às 02:43 | Atualizado há 9 anos

Panela de ferro cheia de arroz com pequi sobre labaredas de um fogão a lenha. Passarinho tranquilamente cantando na janela. Um ranchinho ao pé da serra. Enxadas e foice tendo ao fundo o verdume da plantação a perder de vista.  São cenários fotográficos que cansamos de ver, sobretudo em tempos de redes sociais e blogs em alta. Vivemos postando arquivos com temas rurais, incidindo em inegável bucolismo, mesmo que pareça um tanto quanto superficial. Pasárgada ansiada? Uma fuga das decepções urbanas? Aceitemos inicialmente que sim para levarmos adiante algumas considerações necessárias. Num dias desses, ouvi de um conhecido, um clássico “do contra”, a respeito. A princípio, não montei concordância com ele. Pelo contrário. Refutei sistematicamente tudo que fora dito por ele. Mas como no mundo não perde nada quem contrabalanceia opiniões e as digere para tentar formar as suas, não teve jeito, tive que dar o braço a torcer. Não é que o cara tinha lá suas razões.

Ele via, no celular, fotos de amigos numa rede social, balançando a cabeça, insatisfeito. Vez ou outra, aproximava o aparelho dos olhos e fazia careta num misto de asco, inconformação e gracejo. Fiquei curioso com aquilo. O que foi, Fulano?, lhe perguntei. E ele, depois de enfiar o celular no bolso, ergueu a voz em tom de desabafo: “Bonito, né? Muito bonito mesmo! Em retrato de roça é tudo muito bonito. Bonito de olhar. Eu estava vendo aqui na internet, tem gente que acha que roça é diversão, oba-oba. Vai lá uma vez na vida e fica para sempre endeusando o lugar. Ou até já morou em roça um dia, uns sei que já, mas foram embora para cidade grande e agora fica com essas saudades exageradas…” Querendo ponderar, o interrompi, tentando ponderar, pondo no meio explicações de cunho cultural e teóricas sobre Arcadismo, que sempre existiu no homem essa sensação de desejo de retorno ao seio rural. Para trocar em miúdos, dei como exemplo algumas músicas de Roberto Carlos, Zé Rodrix, Zé Geraldo e outros. Ele, caladinho, assuntou o que eu dizia, sem contestações imediatas, mas no fim e no fundo, não havia como afirmar que eu tenha conseguido aluir o serviço no eito dos seus pensamentos a respeito.  Embora, devo acrescentar, só de ter parado para pensar, já estava bom. Reconheceu as músicas e, assim que terminei minha glosa, começou a cantar, meio capengado, uma ou outra, ressaltando alguns pedaços, principalmente os refrãos.

E, com isso tudo, não é que foi o bendito quem me pôs para pensar. Muito mais quando, de supetão, se colocou de pé para emendar isto: “Sabe de uma? Eu que já morei na roça e sei bem do que falo. Quero é ver essa gente que ostenta imagens da roça acordar quatro da manhã, tirar cem litros de leite, fazer queijo, tratar de porcos e galinhas, matar bicheira de vaca e cavalo, sair na margaça para procurar bezerro perdido, catar e rachar lenha, roçar pasto enfrentando cascavel e maribondo adoidado, pegar a enxada e limpar plantação de milho debaixo de um solão de arrebentar mamona. Aí é que eu quero ver! Muito fácil comprar um pedaço de terra, fazer lá uma casa estucada, com paredes de azulejo, suíte e cinco quartos, porta de vidro temperado, ar condicionado, sinal de internet, televisão por assinatura e no fundo uma piscina para refrescar os dias quentes. Fácil demais. Mas pegar no batente que é bom, necas”.

Ora bolas, se o danado, empertigado de suas verdades, não tinha totalidade de razão, não haveremos de negar veios  de coerência em seus argumentos. Com efeito, matutando em seguida, resguardadas as devidas relatividades, uma coisa me ocorreu de súbito. Raro ver quem mora e trabalha na roça fazer recortes de temas de seu dia a dia para postarem na rede de computadores, por pelo menos duas razões: uma, que não deve ter muito tempo para isso; e outra, que não parece novidade para eles. Pode ser que um dia o façam, se não eles, talvez os seus filhos, quando saírem de lá, enfrentarem a selvageria da cidade grande, darem uma viravolta na condição financeira e, na idade madura, conseguirem comprar, a duras penas, um pedacinho de chão. Para esses, caso assim ocorra, há plenas justificativas. Para todos os outros, há riscos de suas intenções flanarem entre o ilogismo espetacularizante de vitrinas virtuais e o modismo fático.

Percebendo-me encafifado, o sujeito se despediu e saiu cantando, ironicamente, a plenos pulmões: “Eu quero uma casa no campo…” Um chato de galocha detentor de alguma razão, ele.

 

(Hailton Correa, agente prisional, licenciado em Letras pela UEG de Inhumas e escritor. Contato: [email protected])


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias