Opinião

Canções azules

Diário da Manhã

Publicado em 30 de dezembro de 2017 às 00:43 | Atualizado há 7 anos

Sob os cuidados da solidão, o disco giro­la. Há, na Terra, lugar mais seguro do que a “autossolidão”? Estou só. “Autos­só”, aqui e agora. Tamborilando teclas; brin­cando com esse neologismo que me renderá algum escárnio. É que não gosto de “solidão autoimposta”, na verdade eu gosto… Gosto da minha autossolidão, mas não gosto dessa solidão autoimposta sonoramente falando, embora a grafia seja até harmoniosa.

Harmoniosa mesmo é essa palavra: har – mo – ni – o – sa! Com exclamação para ficar pregui­çosa e assim… Não gostei, porque rimou e com isso perdeu a harmonia. Há na Terra coisa mais valiosa do que a harmonia?

Pobre disco que gira, gira e gira no sentido ho­rário, sabendo de antemão que chegará o mo­mento de parar. Depois de tocar um repertório inteirinho com todas as suas letras ora dançan­tes, ora melancólicas, ora poéticas, ora ridículas, ora hora: hora de enfim… Há na Terra coisa mais triste do que “parar de tocar”?

Será que “parar” é mais triste para a vitrola ou para o vinil? E um tem sentido sem o outro? A completude de um ser nunca estará na solidão. Ainda que a criatura seja unimúltipla, ainda que queira, jamais será completa sendo uma. Olho para a desdita vitrola sob a maldição de ser ape­nas um adorno. Olho para o infeliz vinil, que sem a carícia da agulha, mantém, em silêncio, versos cantantes, e penso, há na Terra coisa mais prová­vel do que a incompletude?

Eu estou incompleta. Não completamente, eu juro. Há outros discos aqui, bem debaixo do meu nariz, que cantam melodias risonhas e compreensi­vas. Canções azules e cheirosas que inebriam a mi­nha alma e tocam-na com a terna responsabilida­de de manter-me na roda da vida. Há na Terra coisa mais importante do que a certeza de ser útil?

De repente eu não consigo mais conduzir este texto com o mesmo estado de espirito com que co­mecei… Enfado-me. Ergo o olhar para ver o quan­to escrevi: se já está suficiente para preencher a mi­nha coluna semanal e vejo que é necessário mais um pouco. O que é uma pena, pois eu já estou com náuseas por causa destas palavras que não farão di­ferença alguma se publicadas ou esquecidas. Há na Terra coisa mais estúpida do que a vaidade?

Estar vazio de si mesmo é terrível. Pior que isso é estar cheio de si. Para ter o equilíbrio, há um en­cargo: se apegar somente à árvores e pássaros. Às árvores porque ensinam a força das raízes. Aos pássaros porque estes sabem que estar e partir são obras do instante. Um instante que sempre parte, mas que volta na manhã seguinte, ou no fi­nal de um dia qualquer.

É maravilhoso ter para quem voltar no final do dia. Mas somente se essa pessoa for o seu maior fã. A gente recebe o amor que julga merecer. Melhor viver sozinha e se sentir um sucesso ainda não encontra­do, do que numa duo vivência que lhe induz a crer que você é um fracasso em termos gerais. Há na Ter­ra coisa mais insuportável do que a solidão a dois?

Eu estou aqui “autossó”, com os meus vinis in­tocáveis, pois assim como Nietzsche, detesto quem me rouba a solidão sem oferecer verdadeira compa­nhia. Melhor é ouvir fictícias canções azules, vindas dessa Pequena criatura que agiganta a minha vida. Canta, minha filha, canta. Há na Terra coisa mais soberana do que amor de filho?

(Clara Dawn, romancista e produtora de conte­údo do Portal Raízes – portalraizes.com)

 


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