“Césio 137: passou da hora de nossas instituições quebrarem o silêncio”
Redação DM
Publicado em 19 de dezembro de 2017 às 23:53 | Atualizado há 7 anos
Nunca fui amigo da Tabela periódica, aquele aglomerado disforme de quadradinhos coloridos, preenchido por letras representativas que, até hoje, não consigo compreender bem. Dentre tantos elementos ali alojados, estava o Césio 137 representado pelas letras Cs, que fazia dele só mais um entre tantos elementos químicos que, na minha visão, jamais teriam alguma importância na minha vida. Acontece que não foi assim. O Césio 137 impactou minha vida e a de quase quatro mil Policiais Militares que trabalhavam em Goiânia no ano fatídico de 1987.
Quando foi governador de 1983 a 1985, o Sr Iris Rezende Machado atendeu ao pedido do Comandante Geral da PM, Coronel Alvaro Alves Júnior, para preencher as vagas disponíveis da Corporação, no maior aporte de efetivo já ocorrido no Estado. Daí que, num período curto, cerca de 5 mil homens ingressaram na Policia Militar. A maioria jovens como eu que, vindos do interior, sequer sabiam andar pelas ruas da Capital. Em meio à tantas novidades, me tornei cadete em fevereiro de 1985. Já um tanto polido de minha matutice, agora no ano de 1987, estava eu me preparando para a formatura que ocorreria em 4/12/1987 e faria de mim Oficial da Policia Militar do Estado de Goiás quando, no mês de setembro, já com quase todas as matérias concluídas, fomos acionados para uma missão urgente. Foi pelas tantas do dia 28 de setembro daquele ano que, sem que pudesse imaginar o que estava ocorrendo, eu e meus companheiros, praças inclusive, fomos escalados para fazer guarda num determinado endereço do setor Aeroporto. Lá ficamos alguns dias, num trabalho de sentinela em que impedíamos as pessoas de acessar determinado endereço, sem, contudo, saber exatamente porque. Cápsula de césio? Isso para mim era tão significativo quanto vigiar um banco de praça recém pintado para que ninguém se sentasse nele. Tenho certeza que a maioria daqueles jovens ignoravam o que faziam, tanto quanto eu. Estávamos nós em manga de camisa.
O propósito de contar aqui um flash de minha vida, é por se confundir com a história da PM. Ninguém ali sabia que estávamos expostos ao maior acidente radioativo da história, classificado como nível 6 da Escala internacional de acidentes radioativos que vai, pasmem, somente até o nível 7. Nós PMs não tínhamos equipamento de proteção como tinham os técnicos da CNEM, órgão responsável pelo controle do acidente. Nem sequer tínhamos informação -instrumento mais importante nas tomadas de precaução. Assim, uns faziam guarda; outros serviam alimentação; outros se incumbiam de transporte; outros do armamento (inútil neste caso); outros das escalas e outros, das atividades mais simplórias como manter a limpeza do lugar, etc. Estávamos todos lá, se não escalados de maneira permanente, mas de maneira eventual num revezamento que empenhava todo o contingente da Corporação. 30 anos depois, aqueles jovens já velhos, alguns mortos e outro tanto doentes, ainda lutam para ter seus direitos reconhecidos. Os poucos que conseguiram, tiveram que provar ser portador de doenças graves e sequelas que os incapacite para o trabalho e até para a vida, em decorrência de contaminação. Infelizmente, como tudo que vem do governo, estes homens parecem mendigar por um favor do Estado.
É inadmissível que o governo queira ou espere que sequelas se evidencie para reconhecer o sacrifício daqueles jovens. Foram feitos de boi de piranha e ainda precisam brigar para serem reconhecidos em seu sacrifício. Não se deve reconhece-los porque estão à beira da morte. O reconhecimento do Estado precisa levar em conta que se expuseram de forma grosseira e desnecessária e que, só pelo risco que correram em prol de inocentes, merecem a contrapartida social. Um soldado que vai para guerra não precisa morrer para ser herói. É herói porquê se expôs em nome de seu país, se arriscou e preservou outras pessoas. A diferença aqui, é que o soldado que vai para a guerra sabe para onde está indo. Ao contrário daqueles jovens que foram sordidamente enganados pelo Estado que defendem.
Passou da hora de nossas instituições quebrarem o silêncio. Nossos Comandantes, além de secretários e até governos, precisam vir a público para dizer o que de fato ocorreu, para identificar os heróis daquele acidente, que estão anônimos ainda. O reconhecimento em vida permite alguma justiça que, coroas de flores em túmulos vazios não poderão compensar. Conclamo, portanto àqueles que exerciam o poder na época venham a público contar a verdadeira história do Césio 137. Neste caso, destaco o manifesto do Sr Coronel Waltervam, que comandava a Corporação no dia do acidente. Reconhecer o fato de que todos os PM ativos na época foram empregados no controle da situação, é a melhor expectativa de justiça. Afinal, já se avizinha a hora em que esta justiça não poderá mais ser feita.
(Avelar Lopes de Viveiros, cel RR PMGO, diretor de Unidades de conservação da Amma)