Opinião

Cheiros crescentes

Redação DM

Publicado em 1 de agosto de 2018 às 23:54 | Atualizado há 7 anos

Den­tro da bol­sa ma­ter­na, tão cân­di­da e quen­te. Ele nem se lem­bra que ao sa­ir e res­pi­rar, tam­bém as­pi­ra o ar e o lí­qui­do vi­tal. Mis­tu­ra de água sa­ni­tá­ria e al­go mais. Nem sa­be o que é, mas mar­ca. E fi­ca in­crus­ta­do nu­ma me­mó­ria re­côn­di­ta que ra­ras ve­zes é acio­na­da. Mas es­tá lá. Re­cém-nas­ci­do e re­vi­vi­do.

Ca­mi­nhan­do pe­la va­ran­da ao aguar seus bon­sais, cac­tá­ce­as e su­cu­len­tas ele fe­cha os olhos. A ter­ra mo­lha­da é idên­ti­ca as ru­as sem as­fal­to. Ver­me­lho vi­vo de Go­i­ás e su­as ser­ras e bar­ran­cos. Ao po­dar tam­bém sen­te aque­le fres­cor de gra­ma mo­lha­da que in­va­de as na­ri­nas ao pas­sar de mo­to pe­los can­tei­ros da ci­da­de. Cri­an­ça de no­vo.

Sen­ta­do ao so­fá de cou­ro, li­vro no­vo é ma­nu­se­a­do e chei­ra­do. Co­mo não lem­brar da es­co­la que o aco­lheu e on­de fez e man­tém os ami­gos ra­iz? Vem aque­le odor do es­tên­cil, do mi­me­ó­gra­fo, da pro­va que não po­de vi­rar as fo­lhas e lê-las an­tes que a pro­fes­so­ra au­to­ri­ze. Me­ni­no la­di­no.

Fe­cha os olhos e sa­bo­reia mais e mais as lem­bran­ças. São tan­tas! Per­fu­me da mãe na echar­pe que guar­da com ca­ri­nho e ze­lo. Nas ro­sas que en­fei­tam sua ca­sa, nas flo­res que co­lhe pe­las ru­as. Tu­do eva­nes­cen­te e cres­cen­te. Me­ni­no sa­bi­do.

O ca­be­lo da fi­lha, o pe­lo ma­cio dos ga­tos. Aque­la do­çu­ra tí­mi­da dos mo­vi­men­tos fe­li­nos. As pri­mei­ras na­mo­ra­das. São su­bli­mes, são de­li­cio­sas, são dis­tan­tes. Tu­do vem em bo­los, em blo­cos, em bo­tões. Ado­les­cen­te em ex­plo­são.

A sun­ga de­pen­du­ra­da no va­ral, pin­gan­do clo­ro. A ca­mi­se­ta ex­pos­ta do su­or di­á­rio. O pró­prio ca­be­lo mal­cui­da­do da tou­ca ci­rúr­gi­ca, do ca­pa­ce­te, da tou­ca de na­ta­ção. Mas a mar­ca in­de­lé­vel es­tá ali. Meio áci­da, meio amar­ga. Ju­ven­tu­de a to­da pro­va.

O abra­ço ter­no na ama­da. As mãos em seus ca­be­los. A nu­ca um pou­qui­nho ex­pos­ta, mas de fá­cil aces­so. Ah, chei­ro de pro­mes­sas, de noi­tes e di­as. Quan­to se des­co­bre e re­des­co­bre em ape­nas um ges­to. Ho­mem.

O for­mol que guar­da os ani­mais de es­tu­do da sua fi­lha, é o mes­mo da sa­la de Ana­to­mia. O quei­ma­do da car­ne – pas­mem – tam­bém re­me­te ao cen­tro ci­rúr­gi­co qua­se que di­á­rio on­de vi­da se re­no­va e che­ga. Pro­fis­si­o­nal.

As fru­tas nem sem­pre as mes­mas, os vi­nhos idem. Ali va­ri­am de acor­do com o hu­mor, as vi­si­tas que che­gam e vão. As con­ver­sas in­fin­das das noi­tes agra­dá­veis com os ca­sais e par­cei­ros da li­da. São no­tas ver­me­lhas, um bu­quê va­ri­a­do de opi­ni­ões e ges­tos. Trei­na­do o na­riz e os olhos. É lo­go, enó­lo­go da ca­su­a­li­da­de.

No seu ni­nho, cer­ca­do de li­vros, fo­tos, pa­péis, lá­pis, mo­e­das, pe­que­nos ob­je­tos na es­cri­va­ni­nha se­cu­lar. Tu­do com um sig­ni­fi­ca­do gi­gan­tes­co. E ao sus­pi­rar le­ve­men­te e ins­pi­rar pro­fun­da­men­te, vem uma mis­tu­ra. São re­su­mos de vi­da que nem sa­be dar sig­ni­fi­ca­do pre­ci­so, mas que mui­to im­por­tam. Es­cri­tor.

São tan­tos e cres­cen­tes chei­ros que o en­vol­vem que ao sa­ir e li­gar seu ve­í­cu­lo vem a gas­oli­na e o ar das quei­ma­das de ju­lho e agos­to em sua ter­ra na­tal. É o con­ta­to com o meio ex­ter­no, tal­vez uma lu­fa­da de frio bre­ve tra­ga es­pe­ran­ça. Re­a­li­da­de.

Mais um dia a se chei­rar, mais um mo­men­to a se vi­ver. Mais uma co­ne­xão di­re­ta com me­mó­ri­as im­pa­gá­veis e ina­pa­gá­veis. E ele res­pi­ra, sa­ben­do que vi­ve in­ten­sa­men­te a aven­tu­ra de sim­ples­men­te sor­ver e fil­trar, a vi­da.

 

(JB Alen­cas­tro, mé­di­co)


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