Opinião

Chico Farinha Seca, o anjo feio

Diário da Manhã

Publicado em 28 de dezembro de 2016 às 01:44 | Atualizado há 8 anos

Desde meninote, conheci Chico Farinha Seca.

Francisco Muniz Ferreira era seu nome, que só ficou conhecido quando preparavam sua papelada para a aposentadoria do Funrural.  Baiano da Barra do Rio Grande, ele morou no Duro há muitos anos, vindo talvez tocado pela seca junto com outros retirantes espalhados pelo município.

Por razões de nascença e de doenças, Chico Farinha Seca era cheio de deformações físicas: cego de um olho, a boca torta, e andava todo enviesado, em consequência do reumatismo. Por isso, às vezes lhe faltava firmeza nas pernas levando-o frequentemente a cair pelas ruas.  Um defeito nas cordas vocais deu-lhe uma voz de timbre muito alto, uma fala fina.  Alguém disse que ele tinha uma falinha seca. E falinha seca aqui, falinha seca acolá, acabou conhecido por Farinha Seca.

Ao contrário do que muita gente pode supor Chico, fisicamente tão mal dotado, não carregava nenhum recalque, nenhuma frustração pelos seus defeitos: ao contrário, tinha um coração de ouro, uma bondade sem limites, tão grande que seu caminhar desmandiocado e sua feiura de Quasímodo, passaram a torná-lo até bonito.  Sorria até quando o chamavam pelo apelido.

Chico não tinha a mínima noção do valor das coisas materiais, não conhecia dinheiro, mas era capaz de alimentar um papo durante algum tempo.

Como uma espécie de patrimônio da cidade, cuidaram da sobrevivência de Chico: mãos caridosas juntaram documentos e certidões para aposentá-lo. E aposentou-se.  E dava todo o seu dinheiro – dinheirinho de pouca serventia para outro qualquer, mas para ele muito – para uma pessoa controlar e assim evitar que ele saísse distribuindo para os mais desgraçados de sorte. E ele conhecia tão pouco o dinheiro, que costumava pedir “cinco mil cruzeiros pra comprá um taquim de fumo”, outras vezes, recomendava ao “patrão” para fazer uma economiazinha mode comprá uma casa”.

Farinha Seca não perdia missa ou novena, principalmente as do padroeiro, São José, e quase sempre carregava com ele o cego Lucas, puxado pelo bastão. Pacientemente, bondosamente, ele conduzia seu amigo cego para a igreja.  Seu amigo cego tal qual mente Chico, estava quase sempre com um sorriso nos lábios (talvez por não presenciar as misérias do mundo), mesmo nos momentos mais inoportunos, mostrando seus dentes gastos e o olhar apagado fixo num ponto indeciso no ar.  E Lucas ajoelhava-se, sentava-se, levantava-se e benzia-se, conforme lhe ordenava seu guia, Chico Farinha Seca.

O dinheirinho que o governo lhe dava mal aliviava suas necessidades, mas Chico sabia e dizia que já era muito para quem não tinha nada.  E estando recebendo esse benefício, ele achava que devia repartir com alguém.

– Chico, você não está comendo sozinho! Você está procurando dinheiro acima do normal!… – advertia seu “patrão”.

– Patrão, eu tô ajudando uns pobrezim qui tão precisano muito, coitadim!  Quem tem alguma coisa deve ajudá, né, patrão?

– Mas você vai acabar é ficando com fome, Chico, pois o pouquinho que tem você divide com os outros…

Chico, com um sorriso na cara amarela e pelancuda, coçava a nuca o respondia:

– É o jeito, patrão!  Que é que a gente é de fazê, né?

Todos os domingos, o cego Lucas vinha do Barreiro, a dois quilômetros da rua, para assistir à missa na rua.

E o cego Lucas era conduzido à igreja por um anjo para rezar aos santos.

Chico Farinha Seca, o anjo feio, morreu, mas sua imagem ficou.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

 

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